Carros

Um divertido texto de Tony Judt publicado em O Chalet da Memória, de 2010. Onde se aprende muito sobre alguma das transformações sociais e culturais ocorridas na Europa durante o período que imediatamente antecede e sucede à Segunda Guerra Mundial. Tradução parcialmente apoiada na publicada pelas Edições 70.

Para a minha mãe, o meu pai era «obcecado» por carros. Para ela, a eterna fragilidade da nossa economia doméstica devia-se à tendência do marido para gastar com eles as nossas poupanças. Não posso avaliar se ela tinha ou não razão em relação a isso – é evidente que, deixada por conta própria, teria limitado a família a um carro pequeno por década, se tanto – mas mesmo aos olhos compreensivos de um filho que o admirava, o meu pai parecia de facto viver absorto com os seus carros; especialmente com os Citroën, a marca francesa cujos produtos idiossincráticos enfeitaram o pátio da frente da nossa casa durante a minha infância e adolescência. Tivemos uma ou outra ocasional aquisição inglesa, feita por impulso, da qual rapidamente nos arrependemos – um Austin A40 descapotável, um AC Ace desportivo -, além de um capricho que durou algum tempo com um DB Panhard, do qual falarei mais à frente; mas durante anos Joe Judt conduziu, consertou e falou sobre Citroëns.

Que o meu pai ficasse tão obcecado pelo motor de combustão interna era inteiramente condizente com a sua geração. A «cultura do carro» chegou à Europa ocidental na década de 1950, mais ou menos no momento em que o meu pai estava em condições de se lhe poder juntar. Os homens nascidos antes da Primeira Guerra Mundial já iam bem na meia-idade quando os carros ficaram ao alcance da maioria dos europeus: nos anos 1930-1940, estavam limitados aos calhambeques célebres por seu desconforto e pelas avarias, e a maioria dos europeus não teve condições financeiras de comprar algo melhor até atingir a maturidade. Já a minha geração, em contraste, cresceu com carros e não via neles nada de especialmente atrativo ou romântico. Mas para os homens – e imagino umas quantas mulheres – nascidos entre as duas guerras, o carro simbolizava a liberdade e a prosperidade recém-conquistadas. Podiam comprar um e havia muitos por onde escolher. A gasolina era barata e as estradas ainda estavam apelativamente vazias.

Nunca percebi muito bem porque tínhamos de ter um Citroën. A posição ideológica do meu pai sobre o assunto era a de que os Citroën eram os carros tecnologicamente mais avançados que havia. Em 1936, quando a empresa começou a fabricar a «Arrastadeira», com tração à frente e suspensão independente, isso era de facto verdade, como o voltou a ser em 1956, com a apresentação do aerodinâmico e sensual DS19 «boca-de-sapo». Os seus carros eram inquestionavelmente mais confortáveis do que a maioria dos modelos de família, e provavelmente, mais seguros também. Se eram mais fiáveis, já é outra história: nos tempos anteriores à revolução automóvel japonesa, nenhum carro era especialmente confiável na estrada e passei muitos serões bem aborrecidos a entregar ferramentas ao meu pai enquanto ele reparava alguma peça de motor avariada.

Em retrospectiva, pergunto-me se a insistência de meu pai em comprar automóveis Citroën – na minha infância deve ter tido pelo menos oito – teria algo a ver com uma fase anterior da sua vida. Afinal, ele era imigrante: nascido na Bélgica, criado ali e na Irlanda, que só em 1935 chegara a Inglaterra. Com o tempo, aprendeu a falar um inglês impecável, mas por baixo desta aparência permaneceu sempre continental: o gosto dele por saladas, queijos, café e vinhos chocava frequentemente com a despreocupação da minha mãe, tipicamente inglesa, por comida e bebida, a não ser como fonte de energia. E assim, tal como o meu pai não gostava de Nescafé e preferia Camembert, também desdenhava os Morris, os Austin, os Standard Vanguard e outros produtos genéricos ingleses, olhando, em vez disso, instintivamente para o continente.

Quanto à razão para nos termos tornado uma família «Citroën», quando já havia Volkswagens, Peugeots, Renaults, Fiats e afins mais baratos, gosto de pensar que se explicaria por um qualquer motivo étnico subliminar. Os carros alemães estavam fora de questão, é claro. A reputação dos carros italianos (pelo menos dos que podíamos comprar) estava no seu ponto mais baixo: a opinião difundida que os italianos eram capazes de desenhar tudo, só não a sabiam construir. A Renault tinha sido manchada pela colaboração ativa do seu fundador com os nazis. A Peugeot era uma marca respeitável, mas mais conhecida na altura pelas bicicletas; de qualquer maneira, os seus carros eram construídos como tanques e parecia que lhes faltava estilo (o mesmo argumento usado para os Volvos). E, talvez o argumento decisivo, ainda que não declarado: o fundador epónimo da dinastia Citroën fora um judeu.

Havia algo de um tanto embaraçoso nos nossos automóveis. Numa era de austeridade e provincianismo, pareciam atribuir à nossa família uma qualidade agressivamente exótica e «estrangeira», o que levava a minha mãe, em especial, a sentir-se pouco à vontade. E é claro que eram (relativamente) caros, e, por isso, ostentatórios. Lembro-me de uma ocasião, em meados dos anos 50, quando atravessámos Londres de carro para ir visitar os meus avós maternos, que viviam numa casa velha num bairro operário, numa rua lateral na Bow. Naquela época ainda havia poucos automóveis naquela parte de Londres, e os que havia eram geralmente pequenos, Ford Populars e Morris Minors pretos, provas das posses limitadas e dos gostos convencionais dos seus donos. E lá estávamos nós, saindo de um Citroën DS 19 branco reluzente, como aristocratas vindos para inspecionar os seus humildes inquilinos. Não sei como se sentia a minha mãe, pois nunca lhe perguntei. O meu pai estava agradavelmente absorto na atenção invejosa que o seu novo carro suscitava. Eu só me queria enfiar no primeiro buraco que encontrasse.

Por volta de 1960, durante alguns anos, a obsessão do meu pai pelos carros levou-o a participar em corridas de automóvel amadoras. Todos os domingos lá íamos nós dois até Norfolk ou às East Midlands, onde outros entusiastas organizavam corridas de carros. O veículo do meu pai era um Panhard DB adaptado, um belo carro pequeno que fazia uns barulhos sedutores e competia razoavelmente bem com os Triumph Spitfire e os MGB da altura. Os vários amigos da família eram atraídos (em troca de remuneração? nunca soube) para fazer de «mecânicos», enquanto me era confiada a tarefa, curiosamente responsável, de ver da pressão dos pneus antes da corrida. De certa forma, aquilo tinha alguma piada, embora o ambiente se pudesse tornar aborrecido (homens feitos a falar de carburadores durante horas a fio) e as viagens de ida e volta demorassem seis horas.

Muito mais divertidas eram as férias no continente que fazíamos na altura: em grande parte parecia, por vezes, destinadas a que o meu pai tivesse uma desculpa para fazer uma longa viagem a conduzir. Naqueles tempos anteriores às auto-estradas, uma viagem por estrada no continente era uma aventura: tudo demorava imenso tempo e havia sempre alguma coisa que se avariava. Sentado no banco da frente, do lado «errado», eu tinha a mesma visão que o condutor das gloriosas «routes nationales» francesas. Era o primeiro a ser abordado pelos policiais sempre que éramos parados por excesso de velocidade ou, numa ocasião memorável, a altas horas da noite, nos arredores de Paris, quando fomos parados num operação paramilitar da OAS.

Viajávamos geralmente em família. Para a minha mãe tanto se lhe dava que passássemos as férias em Brighton ou em Biarritz, e achava as longas viagens de carro sempre cansativas e entediantes. Mas naquele tempo as famílias faziam as coisas juntas, e parte do objetivo de ter um carro era sair para os «passeios». Para mim, pelo menos (e, neste aspeto, talvez me assemelhasse ao meu pai), o objetivo do exercício era a própria viagem – os lugares aonde íamos, especialmente nos passeios dominicais, eram com frequência banais e tinham pouco interesse. Mesmo do outro lado do Canal da Mancha, a melhor parte das nossas férias de verão e de inverno era sempre a aventura para lá chegar: os pneus furados, as estradas geladas, as ultrapassagens perigosas em estradas rurais estreitas e cheias de curvas, os pequenos hotéis exóticos aos quais chegávamos já a altas horas, após longas horas de amargos desentendimentos domésticos sobre quando e onde parar. Era no carro que o meu pai se sentia mais em casa e a minha mãe menos. Tendo em conta a quantidade de tempo que naquela altura passávamos na estrada, é espantoso que o casamento tenha durado tanto tempo.

Olhando para trás, agora compreendo melhor do que naquela época os caprichos do meu pai, apesar do prazer que me deram as viagens em família. Hoje vejo-o como um homem frustrado: preso num casamento infeliz e a trabalhar em algo que o aborrecia e possivelmente até o humilhava. Os carros – carros de corrida, carros de que falar, carros para arranjar e carros para o levarem para casa, para a Europa – eram sua comunidade. Sem grande interesse por pubs ou por bebida, e sem amigos no trabalho, transformou o Citroën num companheiro para todos os momentos. O que outros homens procuravam no álcool ou numa amante, o meu pai sublimava no seu romance com uma marca de automóveis – o que explica, sem dúvida, a instintiva hostilidade da minha mãe a tudo aquilo.

Quando fiz 17 anos, aprendi a guiar, como se esperaria, e passado algum tempo comprei o primeiro de muitos carros – como não poderia deixar de ser, um Citroën, mas um Dois Cavalos baratinho. E embora eu gostasse de conduzir e viesse a transportar várias namoradas e esposas por grande parte da Europa e pelos Estado Unidos, conduzir nunca significou para mim o que significou para o meu pai. Como achava as pequenas oficinas da província pouco encantadoras, e porque eu próprio não tinha as capacidades técnicas necessárias, não demorei a trocar os Citroëns por marcas mais fiáveis, embora menos exóticas: Hondas, Peugeots e, por fim, um Saab. É claro que também fui dado a caprichos movidos pela testosterona: celebrei o meu primeiro divórcio com um MG descapotável e tenho gratas memórias de descer a Route 1, pela costa da Califórnia, num Ford Mustang com a capota levantada. Mas estes eram apenas carros, não uma «cultura».

Isto parece-me uma reação geracional convencional. Nós, baby-boomers, crescemos com carros e com pais que os adoravam e tinham prazer com eles. As estradas nas quais nos formámos estavam mais congestionadas, menos «abertas» que as do período entre as duas guerras e das décadas do pós-guerra. Nelas havia pouco de aventuroso na condução e não muito para descobrir, a não ser que quiséssemos algo muito além do convencional. As cidades onde vivíamos já se estavam tornando hostis aos próprios automóveis, que de forma tão míope havíamos acolhido com entusiasmo alguns anos antes. Em Nova York e Paris, tal como em Londres e em muitas outras cidades, faz hoje pouco sentido ter carro particular. No auge da sua hegemonia, o carro representava individualismo, liberdade, privacidade, separação e egoísmo, nas suas formas mais disfuncionais. E, tal como tantas disfunções, essa era insidiosamente sedutora. Agora ele convida-nos a refletir sobre o passado e a perder a esperança. Mas foi bastante divertido na altura.

Tony Judt

    Cidades, Ensaio, História, Memória, Olhares.