Uma pequena nota pessoal: como muita gente, tenho princípios, gostos, devaneios, projetos que me têm acompanhado ao longo da vida. E ela vai já suficientemente longa para lhes detetar alguma constância. Mas neles se incluí também a tentativa de ir acompanhando sempre a mudança, de a entender e de dialogar com ela. Por isso, me custa um pouco o convívio com gente – de diferentes gerações, alguma com um terço da minha idade – que se fixa num modelo, num vocabulário, numa ideologia, num gosto musical, num género de literatura, num tipo de arte, numa forma de vestir ou de se comportar, que repete ‘ad aeternum’ os que fixou por volta dos vinte anos, fugindo a sete pés de tudo aquilo que os possa perturbar. E se o mundo muda, o problema é do mundo.
Isto vem a propósito da forma como, face à presente situação política na República da Irlanda, um certo número de pessoas olha a vitória do Sinn Féin, o antigo braço político do IRA, sobretudo como uma espécie de «vingança histórica» dos setores que se têm batido pela reunificação com o norte. Não é líquido ainda o que vai acontecer. Dadas as particularidades do sistema eleitoral irlandês, onde todos os votos são aproveitados em sucessivas recontagens, quem forma governo em primeira instância não é o partido com mais deputados (o Fianna Fáil, também porque o Sinn Féin não apresentou todas as candidaturas possíveis), mas aquele que teve mais votos na 1ª contagem, que foi o SF. Neste momento existem hipóteses várias: desde uma «geringonça» irlandesa, incluindo toda a esquerda e alguns independentes, a uma coligação com o FF, uns dos partidos rotativistas conservadores que governa a ilha há cerca de nove décadas.
Na realidade, o SF é hoje um partido de centro-esquerda, que, apesar de defender a reunificação, não a coloca de forma alguma como prioridade, tendo até rejeitado claramente – ainda que a inclua como parte do seu legado histórico – a herança da luta armada e a ideia de uma Irlanda única a todo o vapor. As suas prioridades, e em boa parte foram essas que lhe deram a vitória, é a atenção ao emprego, à habitação, ao trabalho, à saúde, à integração dos numerosos imigrantes. Todavia, muitas das pessoas «de hábitos», em regra distantes do local onde tudo está a acontecer ou munidas de óculos especiais, continuam a ver na sua vitória praticamente a tomada do poder pelo velho IRA. À esquerda e à direita. No Ulster, uma articulista unionista (pró-Reino Unido) já comparou a vitória do SF à subida dos nazis ao poder em 1933. Quem se fixa em hábitos para interpretar o mundo tem uma propensão enorme para a cegueira e para a asneira.