Regresso ao tema do racismo, recolocado agora na primeira linha do debate público e das notícias do dia. Dado o mediatismo que o rodeou, o episódio ocorrido em Guimarães com o futebolista franco-maliano Moussa Marega, não só reforçou a pertinência de um olhar atento sobre o assunto, como voltou para ele muitas pessoas distraídas ou que o tomavam como de importância menor. Na realidade, deparamos há décadas, em Portugal, com uma atitude persistente perante o racismo fundada em dois mitos que importa escrutinar: o primeiro, aponta para a sua «existência residual»; o segundo, tende a considerar que, apesar de existirem casos, ele se exprime de um modo «benévolo», diluído em relações sociais de uma natureza «branda» ou «cordial».
O mito da «existência residual» vem do pré-Abril e de um Portugal «multirracial», desenhado do Minho a Timor, que escondia graves antagonismos de natureza étnica, tal como a lógica corporativa o fazia em relação às classes sociais. Portugal vivia a desigualdade «em paz», debaixo de uma ordem política fundada na subordinação à falsa ideia de unidade social – «tudo pela Nação, nada contra a Nação» – que impunha, de facto, a paz podre da desigualdade. A Revolução de Abril alterou radicalmente a situação, mas não foi por isso que, apesar do reconhecimento maioritário da justeza das independências das ex-colónias, a verbalização do colonialismo e do racismo desapareceram do quotidiano. Muitos recordarão as «anedotas do Samora» que jogavam com a ideia do «preto burro» e que, conscientemente ou não, até pessoas progressistas contavam com naturalidade no meio de muita risota. Por sua vez, o fenómeno do retorno de meio milhão de pessoas vindas de África não deixou de interferir nesse sentimento. Já o mito de uma relação de «cordialidade» dos portugueses brancos e negros tomou inúmeras vezes a dimensão de um paternalismo que jamais deixou de ser outra forma de racismo.
Os acontecimentos recentes trouxeram para a luz do dia aquilo que afinal existe desde há muito e tem permanecido na penumbra, como o sabe, melhor que ninguém, quem o sofre diária e diretamente na pele. Ao longo dos 46 anos de democracia, ocorreram episódios notórios onde o racismo irrompeu de forma dramática: iniciativas de grupos de índole fascista que causaram mortes, cargas e espancamentos injustificados da polícia, rusgas em bairros de imigrantes realizadas com brutalidade, desigualdade real de direitos diferenciadas no mundo do trabalho, invisibilidade nos lugares de decisão, segregação nos modos de tratamento, para não falar da abordagem acintosa a propósito da diferença do outro em conversas privadas. Tudo agravado nos últimos anos por uma cultura do ódio, ligada à extrema-direita, que se têm vindo a expandir na Europa e já cá chegou, tomando por suporte o espaço vulcânico e desregulado das redes sociais. Sim, existe racismo social e não é pontual: é estrutural, tem vindo a agravar-se e deve ser frontalmente combatido.
Quer isto significar, como se diz e escreve por vezes, que «Portugal é um país racista»? Generalizar não é justo, nem pode, ainda que como forma de combate antirracista, trazer algo de bom. No Portugal, Estado de direito democrático, perante a lei todos os cidadãos, homens e mulheres, ricos e pobres, hétero ou homossexuais, brancos, pretos ou amarelos, têm os mesmo direitos cívicos e laborais, não existindo segregação formal e estando todas as pessoas submetidas àquela que permanece ainda uma das mais democráticas, igualitárias e justas constituições do mundo. E, ressalvando os grupos de índole fascista ou nazi, nem mesmo os partidos da direita, nada vocacionados para projetos igualitários, alguma vez ergueram como bandeira a aceitação e a normalização da desigualdade determinada pela cor da pele. Além disso, existem inúmeros grupos, cidadãos e iniciativas, para além de forças políticas e instituições, empenhados diariamente, neste campo, num relacionamento igualitário e fraterno, onde a cor da pele é apenas um belo detalhe de diversidade.
Prioridades e formas do imprescindível combate antirracista não podem aceitar o ilusório embelezamento de um racismo «brando» ou «ocasional», e ficar-se por belas palavras ou intenções piedosas. Mas não só esta luta não pode desligar-se de outras, ou colocar-se à frente delas – como acontece neste caso do futebol, onde as atitudes racistas são indissociáveis da organização criminosa de muitas claques – como é indispensável que uma plena aceitação democrática da diferença seja praticada todos os dias e em todos os lugares. Não permitindo que boçais, energúmenos e fascistas possam falar pelo país e, ao mesmo tempo, fazendo com que o «racismo cultural» que ainda penetra certas consciências desapareça de vez. Respondo à pergunta que faz o título: não, Portugal não é um «país racista». Mas é um país onde inegavelmente existe um perigoso racismo endémico e se movimentam muitos racistas ativos: o primeiro precisa ser ativamente combatido através de iniciativas perseverantes e inteligentes, os segundos devem ser castigados sem contemplações, como criminosos que são.
Rui Bebiano
Fotografia de Manuel de Almeida / LusaPublicado no Diário As Beiras de 22/2/2020