É bem conhecida a forma como a atividade nas redes sociais tem tanto de positivo e de construtivo quanto de incómodo ou de prejudicial. Tende a reproduzir em meio virtual as relações sociais tradicionais, desenvolvidas em meio físico, adicionando-lhes uma forte capacidade para dar voz a quem habitualmente a não tem, permitindo que todos possam transmitir rapidamente o que pensam. Isto conduz a frequentes imprudências, dizendo-se o que talvez não devesse ser dito ou que poderia ter sido melhor ponderado. Este apontamento não toma esse sentido negativo, mas poderá tornar-se pouco simpático.
Tem sido sistematicamente referida, em particular pelo primeiro-ministro, a forma como a generalidade dos portugueses e das portuguesas se tem comportado de uma forma tranquila, cumpridora e aparentemente racional perante a forte política de confinamento social determinada pela forte ameaça da COVID-19. De tal modo que nem têm sido necessárias, salvo raras exceções, medidas de uma natureza mais abertamente repressiva. É certo que existem casos pontuais de comportamento coletivos ou individuais absurdos e perigosos – ainda esta segunda-feira um jornal de Coimbra conta o caso de um cidadão apanhado pela GNR a tentar passear na mata do Choupal, um espaço de passeio e exercício da cidade, justificando-se dizendo que «ia só passear o drone» – mas a regra tem sido a da aceitação das prescrições. Nada de comparável a cenários com os quais deparamos em alguns dos «civilizados» países do norte da Europa, onde ainda podemos ver pessoas a circular em grupo de uma forma inteiramente irresponsável.
As razões invocadas para explicar este nosso comportamento quase exemplar são diversas, e normalmente destacam-se as mais simpáticas, como a tranquilidade, o civismo, uma ampla consciência do coletivo e outras que os portugueses não estão propriamente habituados a atribuir a si próprios. Quero acreditar que assim é, e sei que a educação em democracia tem permitido algumas boas transformações, mas é aqui que, como prometido no início, este apontamento se torna pouco simpático. A verdade é que, como resultado da memória (e da pós-memória) do fascismo e, muito antes dele, do longo e transgeracional rastro da repressão inquisitorial e da ética do catolicismo ultramontano – e ressalvando o tempo de ousadias que foi o nosso biénio revolucionário – nos habituámos a uma atitude de aceitação sem grandes protestos da autoridade do Estado que tende a tornar-nos obedientes e de «brandos costumes». Na presente situação, isto até joga a nosso favor, mas não acredito que seja bom romantizarmos a ideia que desenhamos de nós próprios. Temos ainda muito para melhorar como pessoas e como cidadãos.