Ninguém no seu juízo pode avaliar a agonia que atravessamos numa lógica de otimismo. Pelo que estamos a viver, pela impossibilidade de estabelecer metas temporais para as etapas que se seguem, e sobretudo pela certeza de que nada mais será como dantes. É impossível, salvo entre pessoas tolas, ignorantes ou escravizadas por dogmas, conceber a vida futura como exatamente igual àquela que abandonámos há cerca de um mês. Algumas práticas voltarão a ser o que eram, ainda que adaptadas – não é concebível, por exemplo, regressar a cafés e restaurantes fechados em que toda a gente se acotovela – mas outras surgirão, inteiramente novas ou herdeiras daquelas que temos vindo a testar. Velhas formas da vida social, processos tradicionais de trabalho, modos e ritmos do divertimento, até a vida pessoal e familiar, irão mudar, mais ou menos lentamente, de forma mais ou menos profunda, mas irreversivel.
Vai acontecer e não adianta, nem seria avisado, ficarmos à espera que não aconteça. Neste cenário, torna-se imprescindível afirmar duas atitudes. A primeira consiste em olhar essa mudança como uma necessidade, uma transformação que não pode deixar de acontecer, e não necessariamente como um drama, destilando fel e lágrimas diante do novo, e assumindo uma nostalgia paralisante, como já se nota em algumas vozes. A segunda atitude prende-se com a tomada de consciência de que os novos processos conterão a mesma dimensão de combate de contrários que os anteriores: os que vivem da exploração e os inimigos da liberdade irão querer usá-los em seu favor, em particular no que respeita à manipulação de dados pessoais e ao controlo do trabalho, e quem não aceita o seu papel negativo terá o dever de escolher estratégias para o impedir. Adaptando-se, ao mesmo tempo, à nova paisagem que a todos caberá habitar.