O historiador britânico Eric Hobsbawm publicou entre 1962 e 1994 uma tetralogia sobre o caminho do mundo desde a Revolução Francesa à extinção da União Soviética. Cada volume aborda diferentes «eras»: a das revoluções que abalaram a sociedade do «Antigo Regime» (1789-1848); a do capital que passou a dominar o planeta (1848-1875); a dos impérios que ofereceram novas formas e dimensões ao poder político e económico (1875-1914); por último, a dos extremos, onde ideologias antagónicas conduziram a guerras e a tensões vividas numa escala sem precedentes (1914-1991). Essas «eras» correspondiam a fases do percurso humano nas quais povos e Estados se organizaram e se equilibraram em função de quadros de desenvolvimento ou de conflito diferentes e contraditórios, mas traduziram também percursos assentes em ideias partilhadas sobre o itinerário histórico, rumo a sociedades futuras que as diferentes forças e ideologias olhavam como inevitavelmente melhores e mais racionais.
De uma ou de outra forma, procurava-se seguir o caminho da perfeição que os filósofos iluministas e depois os visionários da modernidade tinham concebido para o desenvolvimento das sociedades. A observação do trajeto histórico era sempre acompanhada por quadros concetuais interpretativos e uma base de conhecimento acumulado que conferiam às escolhas políticas um sentido preciso. Deste modo, ao longo de dois séculos todas as formas de governação se foram vinculando a visões do mundo que as justificavam e lhes davam coerência, e todos os governos procuraram inscrever a sua atividade nessa tendência, independentemente dos seus objetivos mais concretos, dos diferentes interesses que materializavam e da capacidade dos seus executantes. De Robespierre a Brejnev, passando por Churchill, Ben Gurion, Nasser ou Mao, não se governava ao sabor do acaso, ou de meras impressões, mas seguindo um plano que se acreditava inscrito no fio da História.
Nas últimas décadas, porém, esta tendência foi-se desmoronando, em boa parte devido à tirania do economicismo e ao individualismo neoliberal, que acabou por produzir governos de mera gestão, nos quais a política não se fundava em projetos coletivos, em modelos de sociedade ou filosofias da história, mas apenas no equilíbrio de interesses. Exemplo maior desta tendência o governo de Tony Blair, que na viragem do milénio tentou harmonizar os posicionamentos tradicionalmente associados à direita e à esquerda, desvitalizando a política por troca com uma administração abstratamente «eficaz» da coisa pública, e servindo de exemplo a governos que procuraram fazer o mesmo, transportando para o campo do poder figuras que eram sobretudo administradores providos de capacidade retórica, mas que descuravam uma governação dotada de sentido histórico, bem como as convicções e os programas políticos sustentados.
Foi assim possível chegar a um cenário no qual, em diversos Estados, os protagonistas da governação passaram a ser escolhidos, não em função de convicções, de propostas coerentes e com um apoio consistente, e menos ainda de uma filosofia política, mas apenas dentro de um quadro de interesses e vantagens, em boa medida apoiado na manipulação da comunicação social, em campanhas de puro marketing, nas estratégias ambíguas do populismo e nas manipuláveis redes sociais. Quando se observa o triste espetáculo dado todos os dias por Donald Trump e por Jair Bolsonaro, bem como pelo seu quadro de colaboradores próximos e indefetíveis apoiantes, encontramos uma realidade inteiramente nova e assustadora: a de um poder sem um projeto claro ou sentido do bem comum, que gere a sociedade pela negativa e pela força do ódio, fundado em impulsos, em falsidades, numa ausência total de perspetiva histórica e até do conhecimento e da razoabilidade mais elementares.
Barack Obama declarou há poucos dias que «mais do que qualquer outra coisa, esta pandemia derrubou, completa e finalmente, a ideia de que os indivíduos que estão na liderança sabem o que fazem». Esta frase, pronunciada por um ex-presidente dos EUA, diz muito sobre a dimensão que toma o atual império da ignorância. Uma nova «era» que Hobsbawm não conheceu, mas que nesta altura cruzamos e para a qual temos a necessidade absoluta de encontrar soluções alternativas. Estas deverão corresponder imperativamente à resposta colocada perante o seguinte dilema: ou admitimos o conhecimento e a convicção como fatores indispensáveis à gestão das sociedades humanas, fazendo com que os programas políticos recuperem o peso da sua importância decisiva, ou soçobraremos perante o obscurantismo, a manipulação e a lei do mais forte.
Rui Bebiano
Fotografia: Jaroslav A. Polák, Self Portrait as Reader of Marx, 2015Publicado originalmente no Diário As Beiras de 30/5/2020