Da vida das estátuas

Todas as revoluções e combates emancipatórios se erguem contra os símbolos dos regimes que pretendem derrubar ou das formas de opressão que pretendem abolir. De entre os mais significativos, pela clareza e presença pública da mensagem que invocam, sobressaem as estátuas, destinadas a enaltecer e a perpetuar a lembrança de figuras ou acontecimentos produzidos no passado. O objetivo é sempre preservar a memória dos indivíduos e dos seus feitos, conservar a repercussão dos eventos recordados ou enaltecer determinadas opções históricas. À parte aspetos menores, como o estilo caduco e o mau gosto original de muitos desses monumentos, a procura de eternização de uma mensagem tende a esquecer algo essencial e sempre presente: tudo no curso da atividade humana é transitório e contextual, nada é perpétuo e absoluto, daí resultando que, o que a dado momento e para certos grupos possui um significado, noutro tempo e para outros setores representa algo diverso, ou mesmo o oposto.

A História, dos sumérios ao presente, convive com estátuas erguidas, conservadas ou derrubadas. A cabeça colossal do rei assírio Assurbanipal, que repousa ainda no British Museum, foi retirada do corpo original e do local onde deveria lembrar para sempre os feitos do conquistador de Tebas. Os bolcheviques rapidamente destruíram os monumentos erguidos aos czares e aos generais do velho regime. Um dos primeiros gestos da Revolução Húngara de 1956 foi demolir a enorme estátua de Estaline erguida junto ao Parque Városliget, em Budapeste. Na Itália libertada do fascismo, nos Estados que emergiram do fim dos impérios europeus em África, ou após a queda do Muro de Berlim, tornou-se rapidamente comum, para além das profundas alterações na toponímia das cidades e na designação dos espaços, a retirada para lugares reservados ou a destruição dos conjuntos escultóricos que recordavam os regimes derrubados e os seus construtores. O eco da decapitação, em fevereiro de 1975, da estátua de Salazar erguida em Santa Comba Dão, marcou entre nós o desejo de um corte com o passado.

A vaga que após o assassinato de George Floyd em Minneapolis se iniciou nos Estados Unidos, transbordando para outras cidades das Américas e da Europa, traduzida no derrube de estátuas consideradas símbolos públicos do esclavagismo, do racismo ou do colonialismo, integra esse fenómeno histórico, necessariamente entendido no seu contexto e complexidade. Desde logo pelo seu significado como resposta: a socióloga Tressie McMillan Cottom disse à revista ‘Politico Magazine’ que «durante meses, o povo americano esperou que o governo o ajudasse no contexto da atual pandemia, mas em contrapartida viu-se submetido a declarações sistemáticas do presidente que tratou com descaso, desacreditou e menosprezou a dor do isolamento, da morte, da doença, do medo, da pobreza e do sofrimento». Esta interpretação é, porém, incompleta. Na realidade, nos EUA, como por todo o lado, o episódio de Minneapolis apenas funcionou como rastilho numa situação em que políticas fundadas na manipulação da democracia, no autoritarismo e no populismo apenas têm vindo a reforçar, ou a tornar mais visíveis, recorrentes situações de injustiça e desigualdade.

O atual movimento de derrube das estátuas relaciona-se ainda com situações de iniquidade e opressão, determinadas por passados e leituras da História, das quais aqueles símbolos são por vezes uma visível e afrontosa representação. Devem então derrubar-se os símbolos julgados insultuosos? Estudar e debater o passado, colocá-lo em perspetiva, perceber que o que num contexto é natural num outro pode ser crime, é o caminho justo e racional. Por isso, o ideal será deslocalizar estátuas e outros símbolos se eles forem extrema e abertamente vexatórios, colocando-os em museus e parques e associando-os ao estudo crítico da sua origem e significado, como tem sido feito em diversos países. Não num processo de reescrita ou apagamento, mas procedendo a uma interpretação mais completa. Todavia, em circunstâncias de luta social aguda, a destruição catártica dos símbolos julgados negativos, ainda que nem sempre justa e plenamente informada, é por vezes inevitável. Combates sociais e revoluções não passam por planos pensados a régua e esquadro que em ambiente controlado eliminem a ira e a iniciativa espontânea dos seus agentes. A História mostra-o constantemente.

Rui Bebiano

Fotografia de Steve Raymer (Muzeon Park, Moscovo, 1991)
Versão revista de artigo publicado no Diário As Beiras de 13/6/2020
    Atualidade, Democracia, História, Opinião.