A partir dos dezassete, e por cerca de oito anos, partilhei com um grupo de correligionários, pequeno e bastante jovem, embora politicamente hiperativo, de uma visão do mundo que na época considerava ser a única verdadeiramente certa e com um futuro à sua espera. Porém, ao mesmo tempo que abraçávamos as grandes causas e as dores do país e do mundo, todos vivíamos na grande solidão dos sectários, fechados no nosso círculo de centena e meia de pessoas distribuídas por apenas três ou quatro cidades. Parte dos dias era, aliás, ocupada a ampliar o espírito de seita, erguendo os muros da nossa indómita fortaleza, por vezes combatendo mesmo contra quem de nós divergia apenas em alguns detalhes.
Não sou, de modo algum, como acontece com diversas pessoas com quem então partilhei convicções e experiências e que agora reencontro, dos que enjeitam ou fazem os possíveis por esconder essa vibrante e arriscada experiência de juventude. Que continuo a considerar sob muitos aspetos como tendo sido essencialmente justa – no combate ao fascismo, à guerra colonial, à escola autoritária, aos crimes do capitalismo, ao tédio da vida sem um sentido positivo e sem liberdade, para não ir mais longe – e também como uma importante escola de humanidade, de cultura e de democracia.
Na realidade, apesar da dificuldade de ser-se juiz em causa própria e de serem sempre os outros quem melhor pode julgar-nos, creio que não me modifiquei muito como pessoa e cidadão. Apenas tendo perdido as absolutas certezas – escreveu Albert Camus, em registo irónico que partilho, que no dia em que fosse criado o partido das pessoas sem certezas, seria o seu militante número um – e a noção de que elas não podem justificar experiências de autoritarismo ou a construção de muros artificiais. Servindo as divergências, quando elas não nos colocam em campos absolutamente opostos do combate social e das perspetivas do mundo, para enriquecer a nossa vida e dar sentido à diversidade.
Revejo sempre essa experiência quando, cinquenta anos depois, deparo com os pequenos grupos ou setores que, no tempo em que agora vivemos, militam por algumas causas e pretendem mudar o mundo sem sair do seu habitáculo de certezas, gritando e disparando em todas as direções, por vezes sobre os próprios pés, em sua indómita e incansável defesa. Por um lado, talvez isso até seja saudável, pois antes viver desta forma do que na indiferença e no conformismo dos oportunistas. Todavia, perante os modos de comunicar e de disseminar cada mensagem com as quais agora contamos, os danos causados pela escolha sectária e intolerante, tanto aos outros, quanto aos mesmos que dela partilham, são também bastante maiores. Embora inevitáveis, mesmo para quem não encara cada tempo histórico como etapa de um ciclo ao qual sempre se regressa.
Rui Bebiano
Fotograma de Jules e Jim, o filme de François Truffaut estreado em 1962Publicado no sinalAberto de 28/7/2020