Em crónica sobre o episódio da fuga de Juan Carlos, o ex-rei de Espanha, Ferreira Fernandes lembrou no Público um episódio que muitos de nós, seus leitores, já conhecíamos. No que me diz diretamente respeito, vi-o em primeira mão em direto, através da televisão, e depois disso li o livro-testemunho, Anatomia de um instante, que sobre o episódio escreveu o romancista extremenho Javier Cercas. Na manhã do dia 23 de fevereiro de 1981, de tricórnio na cabeça e pistola na mão, o tenente-coronel da Guardia Civil Antonio Tejero Molina entrou nas Cortes madrilenas acompanhado de uns quantos subordinados de metralhadora em punho e, como parte de um golpe de extrema-direita que visava acabar com a transição democrática espanhola, disparou um tiro para o ar interrompendo a sessão que estava a decorrer.
Quase todos os presentes, deputados e membros do governo, se atiraram então rapidamente para o chão, como pode hoje rever-se nas imagens de arquivo. À exceção de três: Santiago Carrillo, o então secretário-geral do Partido Comunista, Adolfo Suárez, que era o presidente demissionário do Governo de transição, e o general Gutiérrez Mellado, seu ministro da Defesa. O episódio continuaria com a transformação de parlamentares e governantes em reféns e terminaria no dia seguinte com a ordem de desmobilização dada ao tenente-coronel e a sua detenção, talvez o único gesto político verdadeiramente decente da vida do rei Borbón.
Regressemos ao episódio e ao comportamento singular daqueles três homens. Carrillo, o ex-combatente republicano da Guerra Civil que já tinha vivido de tudo durante o cerco a Madrid, permaneceu sentado e aparentemente tranquilo a fumar os seus cigarros; Suárez, o señorito conservador que tinha transformado a Falange pós-Franco num corpo político capaz de aceitar o caminho para democracia, manteve-se de pé e de queixo erguido, com os braços sobre a bancada; e Mellado, que combatera pelos franquistas durante a guerra mas passara para o lado da democracia, dirigiu-se de dedo em riste ao tenente-coronel, ordenando-lhe aos gritos que saísse imediatamente dali. O que este, aliás, não fez. Javier Cercas descreve muito bem o episódio e o comportamento destas três figuras, nelas reconhecendo, apesar da diferença das personalidades e dos papéis que cada um representava, o sinal comum da bravura e da assunção do risco, que neste caso era a previsível morte. Carrillo, aliás, contaria mais tarde que durante a noite passada como refém acreditou ser aquela a última da sua vida.
Não é bravo quem quer, e a bravura depende de muitas circunstâncias, mas quando ocorre deve ser reconhecida como exemplo. Reconhecendo-se também, neste caso, que sem aquela demonstrada pelos três, muito provavelmente o Borbón do qual agora tanto se fala não teria agido como agiu e, sabe-se hoje, o regime teria caído.
Rui Bebiano