Quando fez o comentário crítico de um dos primeiros trabalhos escritos que realizei na universidade, um professor de larga experiência atirou-me com um reparo que me deixou perplexo por não lhe ter entendido logo o alcance: «o trabalho não está mau de todo, percebe-se que compreendeu o problema, mas o senhor sofre da síndroma da Monarquia Lusitana». No meu orgulho juvenil, calei-me e não perguntei o sentido da afirmação, mas como tantas vezes fazia, e apesar da na época não existirem, como agora, ferramentas de pesquisa facilmente acessíveis, tratei de decifrar a frase por mim. Não foi difícil, bastando-me ir à secção de reservados da biblioteca da universidade e passar uma bela tarde a folhear alfarrábios com perto de quatro séculos.
A «Monarquia Lusitana» é um conjunto de oito volumes impressos entre 1597 e 1729, escritos por cinco monges – apenas um deles não ligado ao mosteiro de Alcobaça – onde procurava fazer-se uma história de Portugal desde o que ali se considerava terem sido as suas origens. Existem diferentes interpretações sobre o objetivo de quem iniciou a obra, sendo a mais corrente olhá-la como uma tribuna de resistência contra a sujeição, então em curso, da soberania portuguesa à autoridade de Madrid. Para o que aqui importa, basta considerar o conteúdo do primeiro volume, da responsabilidade de Frei Bernardo de Brito (1569-1617). Este faz ali remontar a fundação de Portugal à criação divina da espécie humana, apresentando uma sucessão de episódios fabulosos, alguns de inspiração bíblica, para ir fundamentando a sua tese. Um deles, bem extravagante, define o semilendário chefe Viriato como «rei dos portugueses», decisivo para a vitória de Aníbal Barca e do exército de Cartago sobre os romanos na Batalha de Canas, onde, aliás, anacronicamente teria acabado por morrer. É claro que com a analogia o meu professor pretendia, com toda a justiça, questionar a minha tendência para abordar os assuntos começando «em Adão e Eva».
Voltei a ela quando também me tornei professor, justamente quando me coube a vez de criticar tendências análogas em teses e em trabalhos de alunos que divagavam longamente a partir do início dos tempos, em vez de irem diretos ao assunto, como se exige sempre num estudo mais curto e focado, em particular se quem o produz não tiver grande experiência. Mentalmente, de igual modo regresso a ela no campo da crítica das ideias e no debate político, sempre que deparo com formas de pensamento ou com estratégias de retórica – minoritárias, mas sempre muito assertivas e ruidosas – de quem está sempre a colocar questões de princípio, remetidas para o início dos tempos ou para rebuscados detalhes no campo do debate teórico, fazendo a arqueologia do pormenor, quando se torna imperioso e urgente fazer propostas ou resolver problemas de grande e imediato impacto na vida coletiva. A síndroma da Monarquia Lusitana pode ser uma doença viral e causar danos, mas não é assintomática.
Rui Bebiano
Imagem: a Batalha de Canas numa série do Canal HistóriaPublicado no sinalAberto de 12/9/2020