Não costumo escrever sobre livros que não li ao detalhe. Durante perto de dez anos fiz crítica sobre livros de história, de filosofia e de política numa revista, onde tratei mais de três centenas deles, e posso garantir que os li a todos, ao ritmo regular de três por mês. É claro que num caso ou noutro passei algumas páginas com maior rapidez – neste tipo de trabalho tento ser honesto, mas não sou masoquista -, embora não tenha deixado de falar com razoável segurança sobre cada um. Desta vez, todavia, vou abrir uma exceção e comentar um livro do qual apenas li alguns dos seus 91 curtos capítulos.
Refiro-me a Uma História de Espanha, de Arturo Pérez-Reverte, acabado de sair em português europeu numa edição da Asa. Não sou dos que consideram que o autor não o deveria ter escrito, ou que pelo menos não lhe deveria ter dado aquele título, porque não é historiador e «aquilo não é História». Aliás, em Espanha, onde esse problema foi logo levantado, inclusive por alguns académicos, quando da publicação original da obra, Pérez-Reverte tem procurado insistir nisso mesmo, referindo claramente que não tentou escrever «uma História de Espanha». Em entrevista ao diário digital Vozpópuli afirmou o seguinte: «Tratou-se, unicamente, de divertir-me, de reler e de desfrutar; de um pretexto para olhar para atrás desde os tempos remotos até ao presente, refletindo um pouco sobre tudo isso e contando-o de uma forma pessoal, amena e pouco ortodoxa.»
A proposta ser-me ia em si simpática, admito, mesmo sendo historiador de profissão (ou talvez por isso). Mas à medida que fui tentando ler pareceu-me que a apregoada heterodoxia é frequentes vezes rebuscada, e para o meu gosto algo desagradável. Além disso, em alguns momentos pode revelar-se perigosa. Dizer da fase final do século XIX que este «estava a ser um disparate sem pés nem cabeça», que durante o liberalismo «a malta estava à espera de que os políticos se comportassem de outra maneira», ou intitular um capítulo sobre a Guerra Civil de 1936-1939 «Todos eles mataram», sempre num registo algo blasé de quem faz por passar por imparcial em relação ao passado, terá sido uma escolha legítima, sem dúvida, mas muito discutível. Aliás, uma escolha que, nestes tempos de feroz e permanente manipulação da história e da memória por um conhecimento ‘light’ e presentista – que manipula o passado assumidamente em função do presente -, pode ter efeitos muito pouco «amenos».
Rui Bebiano
Fotografia de José Luis Roca