Insuportável, mas também bastante perigoso, o constante ramerrão que se escuta por aí, proveniente dos setores minoritários, embora muito militantes, para os quais as duas partes envolvidas em contenda nas eleições presidenciais americanas deste 3 de novembro «são a mesma coisa». Com a pequena nuance que um ou outro dos seus representantes até concede: «são praticamente a mesma coisa». Para eles, tanto faz.
Trata-se, na verdade, dos nostálgicos da Guerra Fria, quando o mundo bipolar era simples, a preto e branco, capitalismo versus socialismo sem grandes nuances, e o imperialismo, «estádio supremo do capitalismo», ainda tinha a forma e usava os mesmos processos descritos por Lenine na conhecida obra publicada em abril de 1917. Tudo se desculpa até, em consequência, aos atuais governantes da Rússia ou da China, Estados onde o seu poder centralista e autoritário – no segundo caso, sem sequer manter o simulacro de democracia que o primeiro ainda ostenta – se ergue «positivamente», na lógica do presente equilíbrio internacional que concebem, contra o lugar ocupado pelos Estados Unidos. Estes, seja quem for que os governe, são e serão «sempre os mesmos», salvo, para essas pessoas, no dia em que por um passe de mágica um locatário da Casa Branca caído do céu decida dissolver o país ou, em alternativa, acabar com o papel que nele desempenham a propriedade privada e a economia liberal.
É, pois, «tudo a mesma coisa», Trump ou Biden, sem se compreender a diversidade americana, a complexidade do seu sistema bipartidário e, naturalmente, as nuances da política que tantas vezes fazem com que se torne necessário apoiar setores dos quais legitimamente se diverge num grande número de escolhas e perspetivas. É a mesma coisa Trump ou Biden para o equilíbrio geoestratégico internacional? Para as relações com a Europa e o mundo? Para as políticas de género e os direitos LGBTI? Para o respeito para com as mulheres e a integração dos imigrantes? Para o desenvolvimento do serviço de saúde que começou a ser levantado por Obama? Para a independência do poder judicial? Para uma urgente política ambiental global? Para uma educação inclusiva? Para os impostos mais equitativos? Para o respeito para com as minorias étnicas? Para o enfrentamento do racismo? Para as relações com o resto do mundo, a começar pelo México? Para o combate à pandemia em curso? É mesmo? Estamos a falar do mais básico, mas é deste que se trata.
Será boa altura para, contrariando a cegueira, essas pessoas reverem as palavras de Álvaro Cunhal, quando, na segunda volta das eleições presidenciais de 1986, disse aos militantes e apoiantes do PCP que «vamos ter de engolir um sapo». O «sapo» era Mário Soares, que Cunhal sabia, no contexto do momento, não ser propriamente «igual» ao seu opositor.
Rui Bebiano