Quase todos podemos hoje escrever para um público e, se não vivermos sob uma ditadura, emitir opiniões sobre seja que assunto for. A esfera pública ampliou-se numa pluralidade de espaços nunca antes vista, e, como lembrou Habermas, multiplicaram-se os processos dialógicos de comunicação, articulando opiniões, ideias, disposições morais e juízos normativos que passaram a orientar a vida social a uma escala sem precedentes. Isto é essencialmente positivo, uma vez que amplia o direito de cada indivíduo ou grupo a ter a sua voz escutada. Todavia, transporta também consigo perigos vários, pois se o debate público se transforma numa Babel de vozes e escolhas onde todos os argumentos se equivalem sem a mediação fornecida por critérios de verdade e de reconhecimento, sem qualquer responsabilização cívica ou ética e sob a forma de ruído, a democracia que a ampliação da pluralidade prometia converte-se naquela guerra de todos contra todos que pelos meados do século XVII Thomas Hobbes já temia.
Neste quadro onde qualquer coisa e o seu oposto pode ser dita e escrita, uma das frases que com grande frequência corre no espaço público, existindo sempre quem nela se reveja, é aquela em que alguém, incapaz de compreender que num sistema democrático se escuta a voz de todos, mas não prevalece a voz de cada um, se refere ao regime de direitos e liberdades no qual vivemos como sendo «esta suposta democracia». O que significa, naturalmente, que para quem tal afirma o não será bem, ou o não será de todo, uma vez que a posição prevalecente contraria a sua própria opinião. Este tipo de afirmação não terá grande impacto quando traduz a opinião pontual de um ou outro cidadão num desabafo ou no decorrer de uma conversa informal; todavia, ganha um significado mais grave, e até perigoso, se estiver associada a uma escolha política que tem do próprio conceito de democracia uma noção perversa ou restritiva.
De democracia existem definições várias, coincidindo todas apenas no facto de nelas se procurar articular, pelo menos no plano formal, a condução dos negócios do Estado, ou a gestão de formas intermédias de poder, com o interesse e com a vontade da maioria dos cidadãos. Foi neste sentido que Winston Churchill afirmou, daquela forma sarcástica que tanto apreciava, ser ela «o pior dos regimes, salvo todos os outros». Exerce-se de forma direta, quando todos os cidadãos podem ter uma participação ativa nas tomadas de decisão, o que é particularmente difícil de materializar em sociedades populosas e complexas, ou tem a forma representativa, quando o poder político é exercido por representantes eleitos, como acontece hoje na maioria dos sistemas parlamentares. Porém, estes têm formas diversas, podendo em algumas situações por assumir uma forma e uma natureza que tornam enganadora a sua suposta democraticidade.
Assim ocorreu nos antigos e atuais Estados totalitários, ou de sistema monopartidário, como as «democracias populares» e os diferentes regimes ditatoriais do século XX, ou a China, onde o voto popular, depositado no partido único e sem o suporte do debate livre, serve como instrumento de legitimação de um poder não democrático. Assim acontece também nas «democracias musculadas», como o são hoje a Rússia, a Hungria ou a Venezuela, onde a existência de um sistema representativo formalmente pluripartidário não assegura um efetivo respeito pela vontade popular legitimada e pelos direitos dos vencidos.
Não se percebe bem, por este motivo, o que pretende dizer quem tantas vezes se refere de forma pública ao nosso sistema democrático – não só resultante de décadas de luta contra a ditadura, mas também em condições, mesmo com a suas inevitáveis imperfeições, de assegurar o respeito pela vontade expressa da maioria dos cidadãos e o funcionamento legítimo da governação – falando com insistência daquilo a que chama «esta suposta democracia». Provavelmente quererá dizer que o regime constitucional em vigor, a nossa democracia saída de Abril, nem sempre preenche os seus desejos, ou serve os seus interesses, e que, quem está no poder, não tem por esse motivo legitimidade para governar e para decidir. Dificilmente haverá afirmação mais antidemocrática.
Rui Bebiano
Fotografia: Samuel Poromaa, To Build a City, 2020. EfteniePublicado no Diário As Beiras de 14/11/2020