1. Aconteceu ao início daquela noite de 4 de dezembro de 1980. Estava no último ano do curso de História e vivia em Coimbra num quarto arrendado em moradia cuja proprietária, uma professora de piano já de idade avançada, fazia questão de se mostrar todos os dias assumida herdeira de uma família de republicanos, laicos e maçons. Daquela vez entrou quarto adentro sem bater à porta e num riso quase incontido deu-me a notícia da morte, no trágico acidente de aviação que tinha acabado de ocorrer, de Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis e Adelino Amaro da Costa. Não me parece hoje motivo de risota, e nem tal me pareceu naquela altura, mas o facto de ter acontecido o que aconteceu, como aconteceram outros sinais análogos perante o sucedido, pode hoje compreender-se se recuperarmos a memória de um tempo no qual Sá Carneiro era ainda, por muitos cidadãos, tomado como o mais perigoso líder da direita portuguesa.
2. Alguns anos antes, observara-o, um final de tarde, na antiga Livraria Leitura, do Porto, ali na Rua de Ceuta, que ambos frequentávamos com regularidade, conversando afavelmente com o proprietário, o inesquecível senhor Fernandes, sobre títulos acabados de chegar ou que tinha encomendado. Recordo-me – deu-me para prestar atenção à conversa, enquanto deambulava por ali, mas julgo saber porque não a esqueci – que não se tratava apenas de livros de política, mas também de filosofia, de romances e de poesia, que estava a pôr de parte numa grande pilha para levar. Terá sido, julgo, por volta de 1976 ou 1977, e nessa época ainda era bastante comum encontrar pessoas que tinham a política como profissão, mas eram, ao mesmo tempo, gente de cultura, interessada e empenhada em algo mais do que a simples gestão das tendências do eleitorado ou as ocorrências quotidianas dos corredores do poder. Um sinal que é, de hoje em dia, quase uma raridade.
3. Antes ainda do 25 de Abril, recordo o Sá Carneiro da «ala liberal» e crítica da ditadura da Assembleia Nacional, cujos discursos eram, no que a censura deixava passar, parcialmente transcritos na páginas cor de rosa do Comércio do Funchal. As suas palavras serviam ali, para quem desejasse ardentemente que o regime caísse e a democracia fosse instalada, como um bálsamo e um instrumento de esperança sobre a hipótese de algo estar para mudar. Era ainda o tempo de formação política de Francisco Sá Carneiro como um social-democrata na tradição mais recente da Segunda Internacional, autónoma da de Mário Soares, sem dúvida, mas não incompatível, como a história não autorizou que se viesse a confirmar. A sua morte prematura viria a pôr fim a um filão, situado nesse campo da paisagem política europeia, que os anos seguintes viram, dentro do partido que fundou, a transformar-se numa caricatura e num logro. Recorrendo, todavia, à sua figura, ou ao mito criado à volta dela, sempre que necessário para compensar a falta de ideias e de norte.