Em artigo recente saído no Público, no qual interpretava os resultados das eleições presidenciais, Boaventura Sousa Santos destacou, entre outros aspetos também importantes, mas que não interessam tanto neste caso, três situações que devem ser articuladas e tidas em consideração numa análise realista do nosso atual panorama político. Falo da súbita emergência da extrema-direita, após décadas em que permaneceu silenciosa e oculta, das circunstâncias impostas pela quase completa ausência de uma esquerda mais extrema, e da necessidade de considerar o combate em defesa da democracia e do seu aperfeiçoamento como prioritário.
Em primeiro lugar, deve considerar-se o facto de até há pouco tempo Portugal ter sido o único país da Europa onde a extrema-direita parecia inexistente. Esta ausência pode ser encarada como resultante do caráter relativamente jovem da nossa experiência democrática, e sobretudo da permanência de uma memória partilhada da ditadura, da resistência que lhe foi levantada e depois da conquista, a partir do 25 de Abril, dos direitos políticos e sociais de que hoje a generalidade dos cidadãos usufrui. Algo mudou, todavia, numa fase mais recente, estando o seu ressurgimento, após perto de meio século reduzida à atividade de uns quantos nostálgicos, ligado à fundação e ao inegável crescimento eleitoral do partido Chega. Associado ao reaparecimento internacional da extrema-direita e dos nacionalismos, e bebendo grande parte do seu impacto nas estratégias do populismo, este coloca a democracia perante um desafio.
Em segundo, este ressurgimento não se prende com hipotéticos avanços da chamada extrema-esquerda. Esta é uma velha teoria, proposta a partir de 1963 por Ernst Nolte, que considerou o desenvolvimento dos fascismos, e em particular o do nacional-socialismo alemão, como uma resposta «natural» ao bolchevismo e ao sistema coercivo desenvolvido na União Soviética. Esta tese foi refutada por numerosos autores, como Steven T. Katz, que considerou essa leitura uma forma de trivialização dos crimes do nazismo. Todavia, no presente, a questão de modo algum pode colocar-se, pois, como nota Boaventura, «não há extrema-esquerda» no nosso sistema político. Encontramo-la, quanto muito, em estreitas franjas sem peso sociológico ou político, herdeiras dos grupos marxistas-leninistas ou trotskistas dos anos 60 e 70, ou em setores radicalizados, ativos no universo académico, em particular em áreas de estudos próximas do ativismo, mas que, se ressalvarmos a presença nas redes sociais, não obtêm eco fora dos núcleos que habitam. O Bloco de Esquerda já não pertence a este universo, pois atua, como refere o autor, «dentro do sistema», embora procurando aperfeiçoá-lo ao bater-se por alterar e reformular os seus aspetos negativos.
Em terceiro e por último, deve identificar-se o problema mais importante que se põe hoje perante o avanço sem máscara da extrema-direita em Portugal. O seu inimigo não é, pois, uma ausente extrema-esquerda, mas a própria democracia. Regresso ao artigo de Boaventura Sousa Santos: «Na atual conjuntura internacional, o antissistema foi capturado pela extrema-direita. Pela simples razão de que o antissistema agora não é [como o foi outrora] o socialismo ou o comunismo, mas a ditadura e o fascismo, por mais disfarçado de ‘democracia iliberal’. O sistema [que ela combate] é a democracia com todos os defeitos (…) e virtudes (…)». É ela que, precisando ser ampliada e aperfeiçoada, tem em primeiro lugar de ser defendida contra os seus inimigos, que se servem dos seus instrumentos para a procurarem destruir. Esta deve ser uma prioridade de todos e de todas os/as democratas.
Rui Bebiano
Fotografia: Nuno Fox / Lusa, 2019Publicado no Diário As Beiras de 6/2/2021