A obra de George Orwell, desde os ensaios e artigos na imprensa aos romances, manteve sempre, do processo de criação ao impacto da publicação, um vínculo fortíssimo com a atualidade. A que acompanhou a vida do autor, mas também aquela que foi tendo lugar nas décadas que se seguiram e se desdobraram até ao presente. A força deste elo nunca foi, todavia, tão evidente como com os dois romances finais, os mais conhecidos e editados: A Quinta dos Animais (em Portugal traduzido também como O Triunfo dos Porcos), de 1945, e 1984, saído em 1949, poucos meses antes da morte de Orwell. Em particular com o segundo, que superou a conceção alegórica do primeiro, limitado no essencial a um universo não-humano, onde os animais eram «todos iguais, embora alguns mais iguais que os outros». 1984 foi, de facto, construído como uma distopia humana, tendo como referente medos, realidades e conflitos que na época inquietavam o mundo.
O romance saiu quando a Guerra Fria começava e, nos cambiantes da sociedade que descrevia, aludia a um poder repressivo e hipervigilante, dotado de capacidade para controlar de forma completa o indivíduo e a sociedade. O modelo de Oceânia, superestado submetido a um sistema de controlo que tinha no vértice o omnipresente Big Brother, aludia ao regime da União Soviética no tempo de Estaline, e por isso o romance foi algumas vezes usado para combatê-lo. Todavia, Orwell assumira-se desde cedo como homem de esquerda, fazendo-o ao ponto de viver em Paris e Londres entre os mais pobres dos pobres, ou de arriscar a vida na Catalunha durante a Guerra Civil espanhola para se bater pelos republicanos. Esta escolha não o impediu, como socialista que encarava a liberdade e a democracia como essenciais, de denunciar os mecanismos de um regime que considerava tirânico, mas que os setores leais a Moscovo, na época com grande influência nos meios intelectuais e académicos, viam como modelar.
A leitura de 1984 aplica-se, no entanto, a bem mais do que este combate, por vezes feroz, travado entre duas esquerdas. Este é, sem dúvida, como escreveu Jacinta Matos em artigo do Jornal de Letras, «o grande romance político do século XX, reinventado a cada geração e reapropriado em função das preocupações de cada momento histórico e dos condicionalismos específicos de cada sociedade». Como Nós, de Yevgeny Zamiatine, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, integra o género distópico, onde se desenham lugares imaginários que vivem sob condições extremas de opressão, desespero e conflito, e que, ao contrário da utopia – capaz de desenhar um ideal de organização, felicidade e harmonia aplicado à vida coletiva e colocado no domínio das expectativas e do futuro – podem materializar-se num terrível presente.
Um território «orwelliano» de observação e domínio tem vindo a ser ampliado ao longo do último ano pelas circunstâncias da pandemia. É de temer que o uso ultra-ampliado das tecnologias da comunicação e a atuação das autoridades no campo do controlo e das tomadas de decisão por via telemática, nomeadamente no que respeita às condições de trabalho e de circulação, bem como à redução dos espaços de liberdade, possam levar à instalação alargada de regimes até há pouco apenas imagináveis nos territórios ficcionados das distopias. Ao acentuar a dimensão autoritária do que chama o «capitalismo da vigilância», caraterizado por uma monitorização total da vida pessoal e social que é facultada pelo digital e pelas redes de computadores, a filósofa Shoshana Zuboff chama a atenção para o perigo. Revisitar 1984 pode alertar-nos a este respeito.
Rui Bebiano
Gravura de Guillaume MorellecPublicado no Diário As Beiras de 20/2/2021