Durante década e meia do meu trabalho como historiador, li milhares de textos – livros de diferentes géneros e dimensões, folhetos contendo relatos, sermões, profecias e proclamações, cartas de todo o tipo, poemas coligidos ou avulsos, impressos ou manuscritos, redigidos nos séculos XVII e XVIII. Maioritariamente em português, mas também em outras línguas. Parte do esforço consistia em encontrar, por trás do formalismo extremo e muito convencional, que é próprio da escrita daquela época, a dose de observação que permitiria ir mais longe no conhecimento de um passado em regra abordado apenas através dos momentos de maior impacto ou de uma mais evidente carga simbólica. Um dos passos mais difíceis consistia em encontrar o que aproveitar quando, entre toda aquela produção, grande parte abusava do panegírico.
Este é um género literário, traduzido, como se sabe, na exaltação ou no louvor público de uma pessoa ou de uma entidade, em regra dotadas de poder ou de prestígio, fazendo-o sempre de forma exagerada. É esta a razão pela qual atualmente, em sociedades muito menos hierarquizadas, tendencialmente democráticas, o uso do panegírico tanto incomoda: não se trata de uma forma de reconhecimento natural, mas de um ritual de submissão ou de um claro gesto de oportunismo, visando a retribuição do elogio feito. Não foi decerto por um acaso que com a pulsão libertária e igualitária, estimulada pela Revolução Francesa e sensivelmente estendida até aos anos sessenta do século XX, essa forma de louvor hiperbólico e subserviente praticamente desapareceu. Ficou confinada a universos restritos, como os de certas corporações profissionais ou da imprensa regional, dada a importância que aqui conservaram as relações de influência.
O desenvolvimento do pensamento crítico contribuiu em larga medida para este ocaso. Ele oferece análises e julgamentos que questionam e colocam em perspetiva tudo aquilo – seja uma ideia, uma doutrina, uma escolha, uma vivência ou a expressão de um saber – que jamais pode ser tomado como absoluto, definitivo e desligado de uma complexa teia de relações, antes devendo ser sempre encarado como móvel, relativo e inevitavelmente incerto. É verdade que o modo crítico de pensar não é invenção contemporânea, sendo tão antigo quanto a filosofia grega – Gérald Bronner lembra que Sócrates «empenhava-se já em denunciar os sofismas, esses atalhos da razão que não resistem ao exame crítico» – e que ao longo da história, filósofos como Bacon, Descartes, Hume ou Kant puseram em causa a autoridade de juízos considerados inquestionáveis. Foi, porém, a Revolução Francesa, a partir dos fundamentos do iluminismo que lhe abriram o caminho, que passou a desqualificar toda a forma de saber, e também de autoridade, impostos apenas pelo prestígio, pela tradição ou pela força, não pela segurança dos fundamentos e da sua aplicação às diferentes circunstâncias.
A partir do final do século XIX e por mais de seis décadas, foi a afirmação vitoriosa do intelectual público, que pensa os territórios da civilidade e do poder tantas vezes a contracorrente – em muitos momentos debaixo da consigna laicista e democrática «nem Deus, nem Senhor» –, associada ao desenvolvimento dos movimentos sociais e das suas ideologias de suporte, a tornar ainda mais inaceitável, ou mesmo incompreensível, sobretudo para os setores informados, o lugar do elogio fundado no respeito cego por uma ordem julgada inquestionável.
Todavia, no presente, o recuo do conhecimento que se revela em alguns ambientes e o retorno do valor de uma «verdade» não fundada na razão ou na análise criteriosa dos factos, mas antes numa convicção que pode ter a mentira ou a manipulação da informação como elementos fundadores, estão a determinar um regresso em força do cego e desmesurado elogio da autoridade. O conceito latino de «vox populi», a voz do povo, utilizado em muitas línguas para designar «a opinião da maioria», e que em sociedades democráticas foi mantendo por muito tempo um sentido positivo, tem vindo, nos anos mais próximos, a ser maculado pela intervenção dos diferentes populismos. O que estes propõem é uma simplificação de determinadas ideias, deslocando a responsabilidade da sua aplicação para um líder, ou para um pequeno grupo instalado no poder, que se propõe falar em nome do todo e do que se considera o simples «homem da rua». Simulando dar-lhe a voz que este habitualmente não tem, dizendo representá-lo para obter legitimidade.
Nos Estados Unidos da América, é este «man on the street» – a expressão foi criada em 1954 por Steve Allen, apresentador do Tonight Show, da cadeia NBC, e hoje encontra-se vulgarizada – que se tornou um dos fatores da ascensão, do poderio e da continuidade de um avultado apoio público a Donald Trump e ao chamado «trumpismo». Na Europa, em estados de «democracia iliberal», conceito adiantado em 2014 pelo primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, ou «democracia de baixa intensidade», como a Rússia, a Polónia ou a Hungria, ele tem servido para ganhar eleições e logo de seguida impor, recorrendo à polícia e ao controlo da informação, uma autoridade musculada que restringe as liberdades e asfixia o sistema representativo. No Brasil, na Turquia ou na Venezuela, ele tem também servido para justificar o poder de figuras autoritárias, autoapresentadas como providenciais, e que, pelo menos na sua fase de ascensão ao poder, se apoiaram numa exposição perante o cidadão comum como seus porta-vozes. Esta condição é reforçada por um discurso demagógico que, na boca dos seus apoiantes incondicionais, tendo em vista a legitimação desse poder, tantas vezes retoma a dimensão enfática do velho panegírico, do elogio que na essência traduz reverência, sujeição e recusa do discurso crítico. Neste sentido, este representa um perigo para a sobrevivência da liberdade e da democracia.
Rui Bebiano
Imagem de domínio públicoPublicado originalmente no sinalAberto de 27/2/2021