Até há pouco a generalidade dos cidadãos, democratas ou não, vivia uma ilusão que tomava por realidade. Ela assentava na convicção de não existir espaço em Portugal para a afirmação política de uma extrema-direita com vocação de poder ou sequer visibilidade. Prendia-se também com a quase certeza de que, com as conquistas sociais e políticas trazidas pela democracia, a sua emergência jamais seria possível fora dos apertados círculos compostos por indivíduos saudosos do antigo regime, ressentidos ou automarginalizados. Mesmo após o início da nova vaga de acensão, por todo o mundo, de governos, partidos e movimentos daquela natureza, continuou a crer-se que se tratava de algo momentâneo e distante.
A realidade tem-se encarregado de comprovar que, afinal, logo que as circunstâncias políticas internacionais o permitiram e a crise pandémica se instalou, essa tendência surgiu às claras e começou a expandir-se também entre nós. Vivemos agora perante a ameaça real de um partido dessa família política, como o é o Chega, poder vir, se não a ganhar eleições, pelo menos a influenciar a formação de um futuro governo. Esta possibilidade não advém apenas, como existirá quem pense, do ruído instalado nas redes sociais e que alguma comunicação social alimenta, já que sucessivas sondagens de opinião têm vindo a expor de que modo o seu crescimento se está a mostrar rápido e consistente.
Hoje estas pesquisas são feitas com critérios mais apurados do que no passado, permitindo conclusões também mais credíveis. Desta forma, um partido assente em valores de natureza racista, xenófoba, tradicionalista e populista, e dotado de um programa vago, poderá vir a ser o terceiro mais votado, em condições de participar em coligações de poder alinhadas à direita. E isto é tanto mais possível quanto partidos tradicionais de viés conservador, como o PSD ou o CDS, ou como a nova IL, parecem em condições de ceder às suas chantagens, aproximando-se de algumas das suas propostas e não expressando relutância em viabilizar um futuro governo de direita coligada que o inclua. A hipótese de regressarem ao poder será motivo suficiente para afastar qualquer hesitação.
Nestas condições, o que fazer à esquerda? A «unidade» a que alguns idealistas aspiram, e que aparenta ser uma forma de enfrentar aquele cenário, é de todo impraticável. Os partidos que a integram e concorrerão às próximas legislativas têm uma biografia, uma base sociológica, programas, estratégias, linguagens e até idiossincrasias suficientemente diversos, em certos pontos até antagónicos, para se colocar a hipótese de uma frente pré-eleitoral que lhe desse corpo. Nas atuais circunstâncias, jamais conseguirão desenhar uma estratégia e um programa comum que seja coerente e mobilizador. Esperar que ele apareça, só mesmo por uma manifestação de fé. Mas em situações desta natureza, a fé, ao contrário do que garantia São Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios, não basta para «mover montanhas».
A forma de impedir o retorno da direita ao poder, com todas as consequências das quais já tivemos um vislumbre na ação calamitosa e deprimente do governo neoliberal de Passos Coelho, passará assim por estabelecer uma estratégia de aproximação entre as diversas forças. No sentido de construir um acordo em condições de superar as debilidades que puseram termo ao anterior e de não se limitar, como aconteceu, a renhidas negociações parlamentares, por vezes com o aspeto de chantagem. Só que, para que tal seja possível, é necessário que todos, sem exceção, criem mecanismos transparentes de compromisso e de mobilização. Nesta fase parece difícil, mas não o fazerem será imperdoável. E também suicidário.
Rui Bebiano
Fotografia: Pierre Lagarde. Nantes, 2017Publicado no Diário As Beiras de 20/3/2021