Quando se ouvem profissionais da História afirmar ser esta «um saber neutro, situado fora da política», a reação só pode ser de uma enorme estranheza, dado estas afirmações ignorarem o resultado de intensos debates que tiveram lugar dentro da própria disciplina desde há oito décadas. Marc Bloch, um dos responsáveis pela derrocada da velha historiografia positivista e factualista, que foi torturado e fuzilado pela Gestapo por ser destacado membro da Resistência francesa ao nazismo, foi dos primeiros a fazê-lo. Bloch defendia já – num texto de 1941 incluído em livro ainda hoje usado em cursos de introdução ao ofício de historiador – que o objetivo da disciplina não era apenas de natureza científica, mas comportava também uma dimensão cívica e moral, tendo quem nela trabalha a inequívoca responsabilidade de «prestar contas» a propósito da complexidade do que outrora aconteceu e cujo eco se propaga.
Caio Boschi reconhece neste processo a importância instrumental desempenhada pela memória, a companheira da história, que não aceita como algo inerte ou passivo, sublinhando que «o que lembramos e o que esquecemos pode servir à libertação humana, mas também pode contribuir para a servidão». Não podendo, nem devendo a história ser depreciada como apolítica por quem se ocupa com a análise e o ensino do passado. O «dever de memória», proposto pelo escritor Primo Levi, antigo prisioneiro em Auschwitz, intervém aqui como instrumento de um olhar sobre passados traumáticos, estudados e ensinados pela história, enquanto algo sobre o qual, face ao sofrimento das vítimas, aos crimes dos seus algozes e às circunstâncias que os determinaram, não é possível conservar uma indiferença moral. Responsabilizando Estados, grupos e indivíduos por episódios passados, e assim trabalhando para que não possam repetir-se.
Se história não é apenas memória, se não se aceita como critério único e inquestionável de verdade sobre o passado o depoimento pessoal, subjetivo, de quem o viveu, também não pode ignorar-se o grito silenciado daqueles que já não podem testemunhar, como aconteceu com a das vítimas do Holocausto, sujeitas a indizíveis sofrimentos, esventradas da sua dignidade ou reduzidas a cinzas. Como não podem também banalizar-se os crimes mais vergonhosos, aceitando os relatos do passado submetidos apenas à lógica dos vencedores ou à evocação meramente cerimonial dos eventos de onde emanou a autoridade que exibem. Permiti-lo será sempre uma via para o esquecimento do que de pior a humanidade viveu e os poderes da época tornaram possível.
O negacionismo histórico, conceito usado para designar a contestação da veracidade do Holocausto que desculpabiliza os crimes do nazismo, tem sido igualmente aplicado a outras realidades incómodas, como o genocídio arménio, a Grande Fome ucraniana, a realidade do Gulag soviético e dos seus sucedâneos, o extermínio dos tutsis no Ruanda ou o pesadelo imposto no Camboja pelo ‘khmer’ vermelho. Recentemente, o apagamento da dimensão do tráfico esclavagista europeu e árabe, o da perseguição aos uigures na China, ou a rejeição dos crimes da Ditadura Militar brasileira, com o seu cortejo de perseguição, tortura e assassinato. Nestes casos, é obrigação do historiador com sentido da verdade e da equidade, opor-se frontalmente, nos espaços onde tem voz, ao trabalho de negação. Porque, perante o crime, a deturpação e o silenciamento que nos chegam do passado, não existe imparcialidade ou indiferença. Apenas cumplicidade ou denúncia.
Rui Bebiano
Fotografia de Alexander HoggardPublicado no Diário As Beiras de 10/4/2021