Quem não dá a menor importância ao futebol provavelmente não terá percebido o que aconteceu nos últimos dias no mundo peculiar que ele agrega. Goste-se ou não deste desporto – sou dos que gostam, e muito, apesar de lhe reconhecer bastantes aspetos condenáveis e de detestar a «clubite» – ele moveu e move largas centenas de milhões de pessoas, homens e mulheres de todo o mundo, de todas as crenças, de diferentes convicções, em grande parte motivadas por uma componente de prazer e de paixão que sempre o associa ao que de melhor essas pessoas vivenciam e esperam. Já uma vez dei este exemplo, para mim inesquecível: alguém que acompanhei até ao fim da vida e que, no último dia, me pediu um cigarro e que lhe dissesse qual o resultado do jogo de domingo do seu clube do coração.
O que aconteceu então? A tentativa de criação de uma competição de elite, a Superliga, que colocaria no topo, com lucros imensos e sem necessidade dar provas para chegar a esse lugar, os quinze clubes mais ricos da Europa, que a seu bel-prazer convidariam outros cinco para competir com eles, excluindo os demais. Um processo que iria destruir todo o modo de funcionamento da maioria dos emblemas, fundado no apoio e na memória dos adeptos, no esforço desportivo e nas escolas de formação, e só em complemento nos financiamentos. Faria também decair todas as restantes provas e clubes, pois não permitiria concorrência. A iniciativa concitou, de imediato, a ira de adeptos e profissionais de todo o mundo, vindo muitos para a rua para exigir, indignados, o fim do projeto. Um cartaz com uma dimensão fortemente simbólica do movimento que se repetiu em Londres clamava «fans, not costumers», «adeptos, não clientes».
É verdade que parte dos apoiantes das próprias equipas beneficiadas com a prova, os que lançaram este protesto-relâmpago massivo, farão partes de setores nem sempre recomendáveis. É verdade também que muitos não se mobilizarão por protestos mais necessários e justos. Mas foi visível – para quem seguiu as manifestações, escutou declarações, leu cartazes e entrevistas – a genuína indignação com a tentativa de compra por parte de um fundo de investimento norte-americano, com a cumplicidade dos dirigentes daqueles clubes, de um lado da sua vida do qual não estão dispostos a abdicar. A Fronda dos adeptos foi poderosa, assumindo-se como uma luta «dos pobres contra os ricos», e levou a um recuo rápido de parte dos que tinham tomado aquela iniciativa. Que o exemplo frutifique em outros domínios.
Foto EPA. Publicado originalmente no Facebook