Em crónica escrita em 2014 para o Público, António Guerreiro identificou o portador de um género de analfabetismo que considerou particularmente daninho e enganador. Qualificou-o de «secundário» e distinguiu-o do outro, o «primário», mais diretamente associado à experiência da iliteracia, elogiada por Hans Magnus Enzensberger como algo que pode até conter uma dimensão positiva, uma vez que gera uma inocência primordial. Justamente por ser fundado na insciência, no poder da página em branco, na potencialidade do olhar ingénuo, ele pode ser terreno para as fundações de todo o conhecimento, em particular o mais essencial, de certo modo mais verdadeiro, que é o obtido de forma desinteressada, fruto natural da curiosidade, da atenção e do labor desenvolvido por cada indivíduo. Já o «analfabetismo secundário», afasta-se de tudo isto.
Desde logo, o padrão de analfabeto que lhe dá corpo não se vê no lugar subalterno que a designação sugere: de modo algum se considera «secundário», pois, lembra ainda Guerreiro, «desconhece-se a si mesmo enquanto tal e considera-se informado», sendo mesmo capaz de, sem grande esforço, «decifrar os códigos escritos e as linguagens visuais com que o mundo moderno o interpela». Aquilo que não sabe, porém, é que é tão amplo o drama que protagoniza, quanto o daqueles que de algum modo vai conseguindo influenciar, pois existe muito mais mundo além daquele que é capaz de conhecer. Na realidade, o «analfabeto secundário» ignora a sua própria ignorância, e por isso, no imenso universo das formas de conhecimento que nem de perto domina, escolhe aquelas que lhe podem ser úteis, fazendo-se passar, junto dos ingénuos, por detentor de uma dose de saber que estes consideram acima da média.
Guerreiro refere também o serviço que o mundo do impresso presta a esta figura universal, apontando o facto de o destino mais comum das livrarias, outrora espaços de um conhecimento tendencialmente enciclopédico, ser agora o de se lhe renderem. É em muitas delas que brilha hoje, alimentando a parte mais substancial da indústria do livro, esta forma de analfabetismo. Este não pode ser confundido, portanto, com a incapacidade para enfrentar um texto escrito, o que o «analfabeto secundário» sabe minimamente fazer, mas antes com a transformação do processo de escrita e de leitura, intermediado pela livraria, hoje também pelo hipermercado, numa indústria e num espetáculo, sinalizados por pirâmides de volumes pautados por «grandes lombadas, dimensões imponentes, papel grosso, carateres na página bem ampliados», não vão estes passar desapercebidos pelos potenciais compradores. Os «analfabetos secundários» assim destacados são em regra escritores banais, projetados por uma publicidade sonora. São também figuras públicas, que emergem do ecrã da televisão, da tribuna partidária, do mundo do espetáculo, da finança e do desporto, por vezes de uma efémera notoriedade académica, para, realçados nas estantes ou ampliados em anúncios cartonados, intimarem o comprador a dirigir-se à caixa registadora.
Nesta paisagem, as preciosidades, os textos singulares, inquietantes, bem escritos, aqueles que não são previsíveis, que conseguem interpelar e comover, que mergulham nos argumentos e nas palavras da grande literatura, nas ideias que instigam, nas dúvidas que alimentam as convicções, no reconhecimento da variabilidade da história e das sociedades, na diversidade do mundo e das suas rotas e destinos, esses tendem agora a passar pela penumbra da estante menos iluminada, da fila de trás que ninguém vê. Raramente são destacados e, caso tenham desparecido porque algum interessado os levou, jamais são repostos, ainda que possa existir quem o solicite. Para os negociantes de livros, isso não compensa o esforço. A ditadura do «analfabeto secundário» sobrepõe-se à do escritor, do poeta, do pensador, do ensaísta que faz da escrita a sua verdadeira vida, silenciado ou ocultado enquanto a redução do leitor ao menor denominador comum tende a destacar a impactante banalidade.
A quem ama a literatura e os livros, sejam estes em papel ou sigam a lógica binária, mas que tem agora da leitura uma perspetiva pessimista, imposta por este aparente triunfo do «analfabeto secundário», sugerem-se, neste cenário, palavras de Uma História da Leitura, de Alberto Manguel. Nelas comenta o escritor argentino uma fotografia tirada em 1940 durante a blitz alemã sobre Londres, onde se mostra a biblioteca do edifício esventrado da Holland House, quase inteiramente em ruínas, com o telhado desfeito e fumo causado por bombas incendiárias ainda visível, mas onde a estantes se tinham miraculosamente conservado firmes e os livros pareciam incólumes. Podem ver-se três homens entre os destroços: «um deles, como se hesitando que livro escolher, aparenta ler os títulos das lombadas; um outro, de óculos, pega num livro; o terceiro tem outro aberto nas mãos». Eles não estão a voltar as costas à guerra, nem a ignorar a destruição que ela provocara. Também não escolhem livros, enquanto ignoram a vida e a morte que se perfilam fora daquelas paredes. «Estão a tentar persistir contra todas expectativas», conclui Manguel, «a tentar encontrar uma vez mais, por entre ruínas, no conhecimento surpreendente que a leitura por vezes proporciona, uma nova compreensão».
Esta possibilidade criadora jamais a figura contemporânea do «analfabeto secundário» e o seu fiel público, que apenas reconhecem o previsível, o óbvio, o que é fácil entender por não exigir esforço, o que não desperta porque não incomoda, serão capazes de compreender. O trabalho requerido, principalmente a quem trabalha no campo da cultura, da escrita, do pensamento, das artes, mas também nos do ensino e da comunicação, ou a todo o cidadão comprometido que do problema do «analfabetismo secundário» tenha a perceção, não é o de fazê-lo desaparecer – o que será de todo impossível e seria até manifestamente antidemocrático – mas o de impedir que se instalem de vez a ditadura da mediocridade e as formas de silenciamento do conhecimento, da criatividade e dos seus protagonistas que ele procura impor.
Rui Bebiano
Fotografias: Patrick Tomasso, 2016 / Unsplash, e Destruição da biblioteca da Holland House durante a blitz, 1940 / HHPublicado no sinalAberto de 19/6/2021