Desde que tenho a profissão que tenho, com horários maleáveis, mas extensos e jornada de trabalho sempre a rondar as 60 horas semanais, muitas vezes sem fins de semana, feriados e boa parte das férias, tento viver o mês de Agosto de forma tranquila, cortando as amarras físicas com o espaço habitual de trabalho e fazendo por viver num regime mais livre, ainda que cumprindo muitas vezes extensas jornadas de leitura e escrita. Na verdade, são parte do que sou e do que faço desde muito cedo, e por isso não as tomo como um fardo. Conheço muitas pessoas que durante bastante tempo foram agindo de uma forma análoga, fazendo do Agosto sempre um tempo de descanso e respiração. As circunstâncias ajudavam, pois também ninguém ia exigir de mim, ou de nós, que durante esse mês investíssemos em algo que nos impedia de fruir esse pulmão.
Tudo mudou nos últimos tempos com a crescente instalação da «cultura de avaliação» elevada a um grau doentio, e a imposição às novas gerações de professoresuniversitários de um nível absurdo de exigência. Com aulas e seminários sobrepovoados, sucessivos cargos de gestão, orientações simultâneas de teses de doutoramento e mestrado sobre os temas mais diversos, preparações de júris, responsabilidade por projetos de investigação atrás de projetos de investigação, participação ativa em congressos e colóquios, organização de eventos, coordenação de publicações, emissão de pareceres, publicação de artigos (mais valorizados até que livros, ainda que se repitam uns aos outros), tudo dormindo a pensar nisto e num ritmo imparável que o sistema impõe. Sempre sob a ameaça de quem não o segue ficar para trás e ser inexoravelmente ultrapassado na vida profissional. O conhecido publish or perish, publica ou morre, que tanto mal tem trazido ao verdadeiro conhecimento e à criatividade.
Foi neste contexto que comecei – todos começámos – a receber mails e avisos, a ter prazos para isto ou para aquilo, a viver imposições, que ignoram de todo o estarmos em férias e terminam impreterivelmente… em pleno Agosto. E o pior é que se isto, para pessoas como eu, e com o meu lastro, é vivido com grande indignação, mas determina ainda alguma resistência, para as novas gerações de professores e de investigadores tornou-se um «novo normal» que são forçadas a cumprir. Com o telemóvel a tocar no saco de praia, lembrando, a meio de um rápido banho de mar, que amanhã, pelas 9 horas, termina o prazo para entregar mais um artigo, e que às 14 decorrerá outra sessão de Zoom que é preciso, entretanto, preparar. Esta não é uma descrição fantasista da distopia, mas a triste e preocupante realidade de um universo sem espaço para a plena liberdade e para a fruição do lado da vida que nos cabe.