Os territórios da imaginação que permitem conceber outras regiões funcionam como paragens de autoestrada, como não-lugares que pontuam os trajetos sem lhes imporem constrangimentos. O simples deambular pode então, sobretudo dentro de sociedades nas quais as autoridades se esforçam por privilegiar a imobilidade, funcionar como momento instaurador de um processo de alforria perante a prisão representada pelo pequeno mundo. Percorrer pontos no mapa, somá-los como elementos de um património individual, possibilita, nestas condições, a produção de uma cartografia do desenraizamento. Ainda que frequentemente ficcionada, presume-se que, desdobrando-se a todo o momento, esta encontra-se em condições de libertar o sujeito das inibições visuais que o prendem ao rincão do qual originalmente provém. As modalidades que, na viragem para a década de 1970, o fenómeno estava a assumir em Portugal, foram numerosas.
A componente juvenil do Festival de Vilar de Mouros, que decorreu no Minho em 7 e 8 de Agosto de 1971, sob o lema «Cultura e juventude ao alcance de todos», constituiu um momento no qual, do ponto de vista simbólico, essa tensão entre imobilismo e viagem se mostrou de forma notável. Como escreveu o Diário Popular na reportagem então publicada, «uma aldeia pitoresca e pobre à beira Coura transformou-se em símbolo», ao mesmo tempo que o Século Ilustrado falava de «um mundo novo que se parecia abater sobre Caminha e a povoação de Vilar de Mouros». Os mil habitantes da aldeia, quase todos vivendo do campo e habituados à quietude e à repetição do mundo rural, viam repentinamente chegar mais de 20 milhares de «jovens estranhos, muito estranhos», nas palavras de um deles, que pagavam para entrar na área do festival «o equivalente a quatro dias de trabalho, com a enxada, de um natural da aldeia». A maioria, «de cabelos compridos e vestes esquisitas», fornecendo à paisagem humana um colorido fora do comum, era composta por teenagers, que haviam feito a viagem recorrendo à boleia, marca comportamental da época à qual muitos portugueses começavam então a aderir, e mostravam, de acordo com o diário conservador Época, «uma liberdade amorosa que hoje, infelizmente, se nota por toda a parte».
Porém, como notaram os próprios músicos estrangeiros convidados (o cantor Elton John e a banda de Manfred Mann), a apatia do público, por comparação com aquilo que era habitual em iniciativas do género nas quais haviam já participado, parecia algo estranha, revelando, como se escreve em livro de Fernando Zamith que recorda o evento, «a inexperiência de quem não sabe reagir perante um acontecimento novo e diferente». Dentro de um país habituado à censura e à vigilância dos costumes, onde até a tradicional explosão festiva do Carnaval vinha sendo objeto de sucessivos interditos, no qual realizações daquela natureza eram completa novidade, encontrar-se ali era também continuar a observar, permanecendo em viagem ao olhar alguma coisa que parecia deslocada do cenário, em movimento. Como a paisagem, vista do lado de dentro do automóvel, que passa fugaz, sem que por esse motivo deixe de ser impressiva.
Fenómeno semelhante iria ocorrer meses depois, em Novembro, quando do também bastante concorrido I Festival de Jazz de Cascais, no qual atuaram músicos de primeiro plano, como Miles Davis, Thelonious Monk, Dizzie Gillespie, Ornette Coleman, Keith Jarrett, Phil Woods ou Charlie Haden, este último então detido, interrogado e expulso do país pela polícia política, após ter dedicado um tema sobre Che Guevara aos movimentos de libertação das colónias portuguesas. Ainda que, pelo facto de ter sido realizado dentro de um ambiente urbano menos sujeito a constrangimentos, em espaço fechado, a participação do público tivesse sido maior, ela não deixou de ocorrer de forma muito particular, enquanto momento iniciático, experimentado em suspenso, de relação única com uma vivência cultural para a maioria apenas conhecida dos discos e dos suplementos dos jornais, ou mesmo totalmente desconhecida. A coincidência de um grande número de presenças pessoais em ambos os festivais, tão diversos na forma quanto no género musical ali praticado, indicia uma sede de observação de culturas estranhas ao ambiente local, verdadeiramente invulgar na vivência portuguesa da época.
Nesses anos, a viagem que conduzia, dentro dos meios juvenis escolarizados, a outras paragens, era de facto, sobretudo aquela que a leitura, o cinema ou a música proporcionavam. Ela ampliava o efeito de «tapete rolante» cultural que as carrinhas de leitura itinerante da Fundação Gulbenkian, pensadas originalmente por Branquinho da Fonseca, haviam introduzido, a partir de 1958, na paisagem possível de uma parte importante da população escolar portuguesa. Viaturas-furgão motorizadas distribuíam, dotadas de uma espécie de dom da ubiquidade que parecia acompanhar o seu movimento através da péssima rede de estradas, autênticos roteiros para a cartografia dos percursos que viriam a constituir, para muitos daqueles que dentro em breve se iriam tornar estudantes universitários ou jovens quadros técnicos e intelectuais, um primeiro momento do conhecimento do mundo, para além daquele que era permitido pelo horizonte físico. Estacionadas no adro da igreja ou na pequena praça de vilas e aldeias, transportando, como referiu em entrevista Maria Helena Melim Borges, «livros que são veículos de outras coisas», as carrinhas cor de cinza apareciam como naves espaciais, prontas para todos os trajetos imaginados, que conduziam parte do país até regiões posicionadas fora do estreito território que a política educativa e a propaganda do Estado se esforçavam ainda por disseminar.
Construíam-se ali visões do mundo que concebiam a alteridade onde deveria ser produzido o uniforme. Por territórios mentais agora – e mais ainda no contexto da ténue, embora efetiva, breve «primavera marcelista» – cada vez menos sobrevigiados, mais amplos e desdobráveis, seguia-se o movimento de outros mundos, a partir de um lugar também ele crescentemente versátil. Assim também foram sendo criadas as condições para a rápida aproximação a uma cultura internacional, em larga medida geracional, que induzia a alternativa, que propunha outros modos de ler para além daqueles que as leituras oficiais eram capazes de suportar. Dentro de portas, isto não pôde deixar de sacudir consciências que se estavam a estruturar numa oposição pessoal, mas também coletiva, vivencial, mas também política, ao regime e ao modo de estar que iria ruir apenas três anos depois.
Rui Bebiano
Fragmento, ligeiramente adaptado no cinquentenário do Festival de Vilar de Mouros (1971-2021), do meu livro O Poder da Imaginação. Juventude, rebeldia e resistência nos anos 60 (Coimbra, 2013). O autor foi testemunha presencial do acontecimento.