Com algum trabalho de memória para fixar a data, creio poder dizer com segurança que desde 1966 pertenço à grande família política da esquerda. Ainda que de início essa ligação envolvesse mais uma difusa consciência de pertença, nascida num rapaz que estava a começar a quebrar os laços com a sua fé e com a autoridade incontestada, que de um empenho consistente, para o qual, aliás, não tinha idade, experiência, contactos ou leituras. O grande momento de viragem foi, disso já de há muito tenho a certeza, duplamente vivido no ano de 1968, com os acontecimentos de Paris e de Praga, determinantes para perspetivas e escolhas que me moldariam para sempre. De seguida, passando pelos anos rápidos e intensos do marcelismo e da Revolução de Abril, e depois sensivelmente até 1981, foi um trajeto heterodoxo, com uma fase inicial libertária e radical, de seguida mais organizada e razoavelmente consistente.
Seguiu-se um percurso bastante autónomo, onde ao contrário de muitos dos companheiros que encontrei na primeira fase de militância, para quem as escolhas iniciais representavam agora uma «irreverência da juventude» e que optaram por mitificar ou por tentar esquecer essa fase, jamais rejeitei os valores constitutivos do grande campo da esquerda. Onde os conceitos críticos da liberdade, da solidariedade, da justiça e da procura da igualdade, sempre associados a uma forma de agir, permanecem centrais e, não tenho medo de usar a palavra, sagrados. É, por isso, natural que a larga maioria dos homens e das mulheres de quem pessoalmente estou ou estive mais ou menos próximo, ou com quem me fui dando em sucessivos momentos, pertençam a esse território político, ainda que localizados em diferentes quadrantes e com graus de empenho cívico muito diversos e nem sempre regulares.
Neste contexto, são em muito menor número as pessoas de direita ou conservadoras com as quais me fui relacionando. Não falo das de extrema-direita, que não gostam de quem não seja e pense exatamente como elas, com quem jamais terei contacto voluntário, mas daquelas que, sendo democratas, da forma de olhar o mundo e de nele agir no plano social têm um entendimento muito diverso do meu. Entre estas, apesar de situadas nos antípodas da minha sensibilidade e perspetivas, tenho encontrado um número particularmente expressivo de homens e de mulheres honestos, de forte sentido ético, capazes de se interessarem genuinamente pelos outros, de os respeitar, sem que isso signifique que me peçam para acreditar no mesmo que eles. Pessoas estruturalmente de direita que sou capaz de estimar, ou de escutar com atenção, como não posso estimar ou escutar muitas das que pertencem ao meu campo. Tenho uma teoria sobre isto, mas fica para outro dia.
Fotografia de Timon Studler