O que se consumou por estes dias no Afeganistão, «cemitério de impérios» onde já os exércitos de Alexandre, o Grande, da Inglaterra imperial, da Rússia dos czares e depois da União Soviética foram desafiados e vencidos, foi uma enorme e humilhante derrota política dos Estados Unidos da América. A intervenção militar naquele país da Ásia Central, decidida por George W. Bush logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 protagonizados pela Al-Qaeda, foi à época explicada como uma iniciativa de «guerra justa», de caráter defensivo, decidida porque os seus perpetradores ali conservavam as principais bases, continuando a ameaçar os EUA e a Europa. Daí o imediato apoio do Reino Unido, seguido da intervenção da NATO. Da iniciativa resultou então a queda do feroz regime taliban, no poder desde 1996.
A nova república, presidida por Hanid Karzai, foi rapidamente transformada num protetorado norte-americano, mantido entre 2002 e 2021 com recurso a forças internacionais que incluíram também 4.500 militares portugueses. Durante vinte anos foi possível manter em Cabul um governo apoiado na força das armas, que ainda assim implementou medidas benéficas, em particular as que disseram respeito à educação escolar das crianças de ambos os sexos, ao emprego das mulheres, à redução da mortalidade infantil, à criação de uma administração centralizada e de um regime formalmente pluralista, à liberdade de pensamento e à reedificação de estruturas básicas no campo da saúde, de justiça e do ensino que tinham sido devastadas por décadas de guerra. Todavia, isto ocorreu dentro de uma sociedade fortemente conservadora, pautada por enormes rivalidades étnicas e tribais, e dominada por senhores da guerra que mudam de lado de acordo com os interesses do momento. O regime, de facto, jamais teve plena autonomia, sempre dependente da ajuda externa e mergulhado na corrupção e na instabilidade. E as conquistas obtidas de nada valiam para quem rejeitava o seu quadro cultural ou nem sequer a elas tinha acesso.
Os novos tutores justificavam agora a presença, já não pela necessidade de represálias e de prevenção, mas pelo desejo de impor uma ordem política artificial, avessa à história, à sociedade e à cultura afegãs. Isto é, pela vontade de determinar um modo de vida alheio à realidade local, apoiado por setores da élite, da classe média urbana menos envolvidos com o radicalismo islâmico e por algumas minorias étnicas e regionais, mas de costas voltadas para a imensa maioria da população, paupérrima, contrária à mudança dos costumes, dependente economicamente do tráfico do ópio – o país produz 90% de todo o consumido no mundo – e profundamente crente num Islão ultrarigorista. Sabe-se, e a história mostrou-o mil vezes, como esse esforço jamais resultará em lado algum, mas o governo de Washington e os seus aliados acreditaram que seria possível. Ao reconhecer agora não se poder impor um modelo de sociedade a quem o não deseje, o próprio Joe Biden assinou por baixo a certidão de óbito do regime, cuja morte Trump determinara já quando decidiu retirar.
A reentrada dos combatentes taliban em Cabul, feita praticamente sem combates após a súbita deserção do presidente Ashraf Ghani, selou essa derrota, tragicamente agravada com o completo abandono, por parte do governo norte-americano e dos seus aliados, das largas centenas de milhar de pessoas que ao longo de vinte anos serviram o regime republicano ou aderiram ao modo de vida mais livre instalado numa bolha cultural que agora facilmente rompeu. Ainda que não copiada a papel químico da experiência de 1996-2001, adivinha-se inevitável uma rápida regressão dos direitos políticos e sociais dos afegãos, em particular os das mulheres, bem como o regresso à cultura das trevas determinada pela leitura rigorista do Alcorão e das inflexíveis normas da «sharia».
Forma alguma de emancipação se obtém com invasões destinadas a impor aos outros povos um modelo de sociedade, mas também não pode conseguir-se abandonando aqueles que nela acreditaram às mãos dos seus algozes. Neste momento, o mais importante é exigir e aplicar soluções diplomáticas efetivas para o drama humanitário a decorrer, destinadas a proteger centenas de milhar de pessoas desesperadas e sem futuro. Não será, por certo, mostrar regozijo com a vexatória derrota norte-americana ou ajustar contas com quem, cidadãos e forças políticas, de boa-fé ou ingenuamente, de início admitiu uma intervenção pontual, rápida e com objetivos precisos. Sabendo-se, para mais, que no terreno e a dialogar com o novo poder estão já russos e chineses, apresentados como fiáveis pelos nostálgicos do mundo que ruiu em 1989. Eles não estão ali para defender o pluralismo, sustentar direitos ou ajudar as mulheres e os homens do Afeganistão, que no dia a dia continuam entregues a si próprios.
Rui Bebiano
Fotografia de Joel Heard (Badakhshan, Afghanistan, 2021)Versão ampliada do artigo publicado no Diário As Beiras de 21/8/2021