Os populismos, sejam os associados a diferentes ditaduras do século passado, ou aqueles que ocupam um lugar de destaque nos sistemas políticos contemporâneos, incluindo nestes os que parasitam hoje a democracia representativa procurando transformá-la em «iliberal» – um oximoro difundido pelo primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán – são mais habitualmente conotados junto da opinião pública com a extrema-direita política. A sua proposta formal de superação do fosso existente entre a elite e o povo não é, sob essa perspetiva, senão uma tentativa de aprisionamento deste último por parte de um grupo que proclama falar em seu nome justamente para lhe retirar poder e ter condições para agir de forma autoritária e completamente arbitrária.
Todavia, existem também propostas e práticas políticas que combinam a retórica populista com alguns dos temas caros à esquerda, fazendo-o, em nome do «povo comum», como legítima forma – é este o ponto de vista de Ernesto Laclau e de Chantal Mouffe, por exemplo – de rejeitar o elitismo e de promover uma sociedade que consideram tendencialmente igualitária. Neste campo, aspetos diversos como o combate contra os excessos do capitalismo e em demanda da igualdade social, ou um antiamericanismo profundo, ou ainda o chamado «populismo inclusivo», que tende a valorizar os direitos de alguns setores sociais e de certas minorias em detrimento de outros, sobrepõem-se à ideia, dominante entre a esquerda tradicional, da necessidade de uma sociedade alicerçada no conflito de classes e no papel decisivo do Estado-Providência.
Uns e outros, os antigos e os recentes, os de direita e os de esquerda, contêm, entretanto, algumas marcas comuns, ainda que a retórica e os objetivos possam ser substancialmente diferentes ou antagónicos. Estas marcas incorporam, para além da sobrevalorização do «povo» encarado como entidade abstrata com o papel de agente da história, uma diluição das classes sociais substituída por dinâmicas consideradas mais inclusivas ou a valorização dos nacionalismos, tantas vezes associada a diferentes formas de xenofobia ou de racismo. Ou ainda, aspeto que neste artigo quero destacar, à produção de uma espécie de «senso comum», traduzido na desvalorização formal do sistema representativo e no menosprezo de um pensamento político e social que considera essenciais os direitos do indivíduo e a dimensão criadora do trabalho intelectual.
É aqui que converge um pobre argumento, recorrentemente usado por alguns populistas quando tentam combater a capacidade de alguém, em nome dos valores universais da liberdade, da democracia, do respeito pela diferença ou pela diversidade cultural, a poder exprimir publicamente uma opinião pessoal que contrarie as suas convicções. Segundo eles, essa pessoa fá-lo muitas vezes, palavras suas, «a partir do sofá», de uma posição individualista, que julgam demasiado confortável, e como tal ilegítima, para invocar princípios que residem no «povo» e apenas a este se aplicam. Trata-se de uma marca totalmente adequada à retórica populista, dado procurar colocar o que eles entendem por interesses do «coletivo», ou do quotidiano por este vivido, à frente de uma reflexão mais profunda e completa sobre o presente e o futuro, que procuram depreciar por não conter «a voz do povo».
Quem usa tal caricatura de argumentação ignora ou esquece que praticamente todas as ideias que, pelo menos desde o Iluminismo e ao longo dos últimos três séculos, serviram como instrumentos de reflexão e de dinamização do progresso do humano – avanço algum na história foi, aliás, realizado apenas «na prática», sem a intervenção do pensamento, da crítica, do debate ou da especulação de base individual – foram produzidas no recato dos gabinetes, das bibliotecas ou das redações dos jornais por quem teve tempo e dispôs de meios para o fazer. Aconteceu com Karl Marx, por exemplo.
Rui Bebiano
Fotografia de José Martín Ramírez Carrasco, 2014 (Unsplash)Publicado no Diário As Beiras de 4/9/2021