Todos/as temos passado e só quem tenha problemas sérios de memória ou seja mesmo completamente tonto o pode rejeitar de forma absoluta. Somos sempre, e somos bastante, também aquilo que fomos. Além disso a nostalgia – conceito sobre qual tenho trabalhado profissionalmente nos últimos tempos – não é apenas uma tristeza causada pelo distanciamento de algo que vivemos, nomeadamente na nossa juventude, nem sequer um mero estado melancólico causado pela ausência de algo que somos capazes de identificar. Na verdade, pode também ser uma forma positiva de uso do passado, servindo este uso, ou parte dele, para alimentar e dinamizar a nossa própria vida, seja ela a pessoal ou a coletiva. O conceito de «melancolia de esquerda», divulgado pelo historiador Enzo Traverso, aponta nesta última direção, sublinhando o papel politicamente positivo de determinados aspetos ou episódios vividos ou herdados.
Todavia, o estado de fixação no passado é muito perigoso, uma vez que nos impede de compreender as novas dinâmicas do presente e tende a anestesiar o espírito crítico. É isto que faz, por exemplo, com que tantas pessoas evoquem acontecimentos, figuras, personagens, ideias, até relações pessoais do passado, como algo que tendem a embelezar ou a mitificar, tornando maravilhoso o que (ou quem) foi apenas sofrível, julgando inatacável algo que na própria época foi questionado, ou até fantasiando uma ligação ou um interesse que na altura de facto não mantiveram, apenas os construindo ‘a posteriori’. Talvez a minha condição de historiador do contemporâneo ajude a ter esta aguda consciência, admito, sendo-me por isso tão evidente essa distorção muitas vezes doentia. Não posso, todavia, avisar quem dela padece do problema, uma vez que o passado – o real ou sobretudo aquele que imagina – é o seu santo dos santos e essa pessoa não me perdoaria.