Ontem à noite, enquanto via na HBO mais um episódio da série de televisão, já com alguns anos, sobre a vida pública e privada de John Adams (1735-1826), uma das figuras centrais da Revolução Americana e o segundo presidente dos Estados Unidos, confrontei-me com um tema recorrente nas biografias de homens e de mulheres que dedicaram o essencial da sua vida à arte – arte porque deve misturar técnica e invenção – da política. Refiro-me a considerar a forma como essa escolha, se estiver associada a um ideal e a uma perspetiva coerente do mundo e da história, em muito determinou as suas escolhas de vida, as suas relações pessoais, a sua capacidade para distinguir o importante do acessório. Sendo construída como uma missão, à qual tantas vezes se sacrificam o descanso, a tranquilidade, alguns prazeres e mesmo a própria família, enquanto os riscos e as situações mais árduas se sucedem. O longo percurso de Adams, desaparecido aos 90 anos, para a época uma eternidade, foi disso constante testemunho.
Esta caraterística defronta a ideia – estruturalmente autoritária e de direita, muito cara aos populistas dos mais variados matizes e bastante comum entre as pessoas com uma perspetiva ingénua ou limitada do mundo – segundo a qual a condição de «político» é sinónimo de oportunista, de mentiroso, de inútil ou, pior, de impenitente criminoso. Há muito tempo que, na tentativa de ajudar a desmontar o erro desta antidemocrática ideia-feita, começo as minhas aulas de história política justamente por invocar o princípio, proposto vinte e quatro séculos atrás por Aristóteles de Estagira, segundo o qual, por um lado, a vida individual encontra-se irrevogavelmente mergulhada na vida da cidade, da ‘polis’, não existindo fora dela, e por outro, a política deve ser vivida como atividade que tem por objetivo, sejam quais forem os seus contornos, a conquista da felicidade humana. É, por este motivo, uma atividade intrinsecamente nobre, tão necessária quanto custosa, exigindo geralmente esforço, entrega, exposição e, tantas vezes, sérios riscos.
É certo que existem no mundo da política, como em todas as atividades, muitas pessoas detestáveis, oportunistas ou mesmo criminosas, como existe quem dela se sirva para os objetivos mais egoístas ou para a aplicação dos piores instintos. Esta é uma possibilidade, mas de modo algum a sua essência. Principalmente quando é vivida por democratas, isto é, por pessoas para quem o serviço público impõe escolhas e o permanente confronto com outras sensibilidades e pontos de vista. Em ditadura, eles batem-se, tantas vezes com os maiores custos pessoais, em alguns casos com a dádiva da vida, pela instauração de uma ordem mais igualitária e justa, enquanto em democracia trabalham arduamente para que as escolhas sejam, não necessariamente perfeitas, mas as melhores que conseguem imaginar e nas quais acreditam. Dando, tantas vezes, o melhor de si no meio da incompreensão. Quando desaparece um político democrata, que viveu de maneira intensa esta paixão, e evocamos o seu trajeto, é nisto que temos o dever de pensar. Partilhemos ou não, ocasionalmente, certas vezes, ou jamais, os ideais em que acreditou e que se esforçou por aplicar.
Neste momento, como será óbvio, estou a pensar em Jorge Sampaio.
[Fotografia: Joakim Honkasalo, 2018]
Rui Bebiano