Em democracia, a forma desejável de governar a coisa pública será através de entendimentos partidários. Sejam de natureza governativa ou apenas parlamentar, estes devem ser estabelecidos, da forma o mais ampla possível, entre forças que, conservando a sua indispensável diferença identitária, se esforcem por conciliar e partilhar propostas e objetivos, tomados como urgentes e essenciais para gerir um destino social comum.
Esta escolha permite reunir três condições essenciais para a gestão das sociedades democráticas: em primeiro lugar, equilibra expetativas e interesses diversos, associando-lhes uma base política de apoio e de aplicação mais dilatada; em segundo, promove um estado de apaziguamento social, reduzindo o conflito político extremado e tornando a vida menos inquietante e imprevisível; em terceiro, reduz a hipótese, sempre presente em soluções de governo monopartidário ou de maioria absoluta, de uma indesejável repartição dos lugares de poder por clientelas compostas de militantes e simpatizantes.
A solução de governo alargado e representativo sem deixar de ser eficaz tem sido prática comum nos Estados escandinavos e em alguns da Europa central. Há poucos anos, Borgen, a premiada série televisiva dinamarquesa, mostrava como funcionam esses equilíbrios. Não isentam o país de conflitos e contradições, vitais aliás em democracia, mas, fora do círculo estreito do poder, permitem à sociedade viver sem a pressão quotidiana da crise eminente ou da suspeição. A partilha de responsabilidades impõe ali, mesmo aos partidos menos representativos, se quiserem ser tomados a sério na formação dos governos, um empenho na concretização de políticas, sabendo desde o início o seu eleitorado que essa será uma possibilidade.
Entre nós, até 2015 isto aconteceu apenas na área que ia do PS até à sua direita, com soluções de governo que tiveram como principais pilares apenas aquele partido ou o PSD. Naquele ano emergiu então a solução, para alguns escandalosa, conhecida como «Geringonça». Sabe-se como tudo aconteceu: mesmo não tendo sido o partido mais votado nas legislativas, o PS acordou com os partidos à sua esquerda um pacto parlamentar, de um caráter absolutamente original na democracia portuguesa, que permitiu fazer cair a hipótese de a coligação PSD-CDS continuar a governar e abriu caminho para, na diferença, superar incompatibilidades políticas e desconfianças que historicamente vinham de antes do 25 de Abril.
Essa experiência começou a desfazer-se há dois anos e ruiu agora. Mas estava condenada à partida, pois o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista não se esfoçaram – o PS também nada fez nessa direção – por definir metas que, sem questionar a sua imprescindível identidade, de facto os aproximassem da governação. Não o fizeram por uma dificuldade essencial: por ainda não terem interiorizado que, ao lado da ação reivindicativa, podem partilhar responsabilidades de governo que implicam cumplicidades. Aliás, com o PCP, a continuidade da cultura dogmática leninista e da crítica interna da «democracia burguesa», bem como a definição de uma rígida sociologia «de classe» e de um antieuropeísmo profundo, têm tornado inevitável essa rejeição.
No caso do BE, cultural e socialmente interclassista, sem vocação de vanguarda, o problema situa-se na dificuldade, visível em muitos dos seus dirigentes, embora menos no seu eleitorado, para assumir que uma política de esquerda não obriga a ser contrapoder 24 horas por dia, podendo associar a dimensão do protesto e dos princípios à gestão da vida real das pessoas. A forma como, primeiro com os gregos do Syriza, e depois com os espanhóis do Unidas Podemos, passou de uma política de fraternidade ao distanciamento, advém da desconfiança perante as cedências sempre impostas por essa escolha política chamada governar, ainda encarada como cilada ou traição. Até quando, o futuro o dirá.
Rui Bebiano
Fotografia: «L-Ducts Composition», de Igor DemidovPublicado no Diário As Beiras de 20/11/2021