Precisei certa vez de avaliar um trabalho de doutoramento sobre Miguel de Unamuno, o ensaísta, filósofo e professor, natural de Bilbau, que no ano de 1936, dois meses antes de morrer em prisão domiciliária, enfrentou em sessão solene na Universidade de Salamanca, da qual era então reitor, o general franquista Millan-Astray e uma turba de falangistas que gritava «Viva la muerte!». O trabalho tinha qualidade, mas apresentava na capa uma fotografia, supostamente de Unamuno, que era na realidade de José Ortega y Gasset, o filósofo madrileno que viveu parte do exílio em Portugal. Como me competia, chamei a atenção para o que julgava ser um lapso, mas a autora não só manteve a escolha como veio posteriormente a publicar o estudo repetindo o erro.
Durante algum tempo, perguntei-me qual seria a razão para insistir naquele absurdo, ignorando a minha advertência. Pensei em exibição de arrogância e desonestidade, ou em pura teimosia, mas depois acabei por presumir uma explicação diferente e mais complexa. Na verdade, nas fotografias que de ambos nos chegaram, o semblante seco e fechado, de algum modo estoico, de Unamuno, é visivelmente o oposto da aparência apolínea e exuberante, com algo de bon-vivant, que durante boa parte da vida Ortega manteve. Aquilo que a autora teria procurado seria produzir uma imagem de capa mais forte, em condições de chamar a atenção de quem a observasse, e, por esta forma, também de obter um maior número de leitores.
Este pequeno episódio conduz-me a uma das caraterísticas essenciais da comunicação e da cultura contemporâneas, dominante neste século XXI que atravessamos. Ela traduz-se na hipervalorização da imagem ou do aspeto de uma dada obra que se pretende divulgar – pode ela ser um livro, um jornal ou uma revista, o cartaz de um filme ou a publicidade a uma série de televisão – na comparação com o valor ou o interesse intrínseco do verdadeiro produto. Naturalmente, isto não é novo, pois a «civilização da imagem» começou a substituir a «civilização da palavra», de uma forma bem percetível, desde que se tornou possível, com recurso sistemático à fotografia e ao cinema, uma disseminação dos conteúdos imagéticos, sempre mais facilmente apreensíveis e mais densamente carregados de significados.
Em 1935, no ensaio «A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica», Walter Benjamin, mesmo não tendo testemunhado as consequências extremas do fenómeno que foi dos primeiros a observar, chamava a atenção para a dimensão perversa desse excesso da imagem. Sigo-o aqui, recorrendo propositadamente a uma citação um pouco mais longa que o habitual nestas crónicas: «A humanidade, que antigamente, com Homero, foi contemplada pelos deuses olímpicos, tornou-se objeto de contemplação para si própria. A alienação de si própria atingiu então o grau que lhe permite viver a sua própria aniquilação como um prazer estético de primeira ordem. É assim a esteticização da política praticada pelo fascismo.» Benjamin notou como os regimes ditatoriais e «totais» da primeira metade do século passado se serviram da imagem para mostrarem a sua força perante os seus cidadãos, levando-os à submissão.
Por estes dias, os novos totalitarismos – dos populismos, que tudo reduzem ao menor denominador comum, ao neoliberalismo, que uniformiza em nome da suposta inocência da livre iniciativa – seguem um caminho idêntico, privilegiando o poder rápido da imagem contra a força tranquila da palavra. O pequeno episódio da minha vida de professor deixado no início não revela a mais extrema gravidade dessa tendência que a todos manipula. Porém, se a minha interpretação estiver correta, está ali presente a essência deste mal: o destaque da aparência, desdenhando o essencial.
Rui Bebiano
Fotografias de domínio públicoPublicado no Diário As Beiras de 11/12/2021