Ao contrário do que por vezes oiço, não considero que para falar de forma pública sobre qualquer assunto seja necessário que quem o faz seja um especialista no tema. Se assim fosse, não existiria opinião pública, ou então as conversas cingir-se-iam a obscuros conciliábulos de peritos. Passei grande parte da vida num meio profissional onde é habitual não tomar posição sobre questões críticas porque, como diz quem se escusa a formular opinião não-consensual ou a definir uma escolha difícil, elas não são «da sua especialidade». Todavia, quando emitimos opiniões perante os outros, e em particular quando o fazemos para uma audiência – as redes sociais vulgarizaram este processo, e isto não é necessariamente um mal – temos o dever de nos informar sobre o tema abordado, evitando assim dizer disparates logo na primeira frase. E não precisamos de pesquisas aturadas: a Internet fornece informação essencial sobre tudo e o trabalho de cada um consiste em procurá-la e em lê-la com atenção e de forma crítica.
Se assim todos fizessem, os nossos «amigos de Putin» não andavam por aí a dizer tolice sobre tolice, algumas com uma dimensão tal que nem a estupidez, o fanatismo e a ignorância todos juntos conseguem justificar. Ainda hoje, por exemplo, li no Facebook o texto de um sujeito com alguma responsabilidade que em estado de descontrolo afirmava a pés juntos que a Ucrânia possuía 30 bases da NATO prontas a disparar sobre Moscovo (quando nem pertence ao tratado militar), que o governo de Kiev é nazi (sobre isto, leia-se o parágrafo seguinte) e que os soldados ucranianos andam há anos a fazer incursões nas regiões de maioria étnica russa matando milhares de pessoas (quando quem controla essas regiões são desde 2014 milícias pró-russas).
Observemos então, de forma comparada, a legitimação política, obtida em eleições, dos governos da Ucrânia e da Rússia. Ambos têm conotações com posições inequivocamente conservadoras e nacionalistas. A Duma russa tem 450 deputados, existindo lugares não-preenchidos (336 da conservadora, populista e nacionalista Rússia Unida, de Putin, 40 do Partido Liberal-Democrata, ultranacionalista e ligado à Igreja ortodoxa, da Jirinovski, que apoia o governo, e 43 do novo Partido Comunista, na oposição, mas igualmente nacionalista, existindo 26 deputados distribuídos por 3 partidos mais pequenos, sendo o maior o Rússia Justa, de centro-esquerda, com 23). O parlamento ucraniano possui também 450 lugares, alguns vagos (Servir o Povo, do Centro, com 246, o Confiança, partido regionalista, com 20, e o Pelo Futuro, populista, com 24, estão do lado do atual poder; na oposição estão a Plataforma Pela Vida, social-democrata, com 44, o Solidariedade Europeia, democrata-cristão, com 27, o Pátria, conservadora e de centro-direita com 24, e o Voz, defensora do neoliberalismo, com 20, com mais 18 independentes).
Bastaria este exercício simples para se verificar que o que move cada um dos lados em confronto não são grandes distinções programáticas ou no plano da ideologia, mas antes interesses diferentes. E divergentes posições a respeito do direito das nações independentes ao respeito pela sua integridade territorial. É isto, em associação com problemas globais de geo-estratégia, articulados com conflitos entre diferentes interesses imperiais, que determina o dramático conflito em curso e separa os apoiantes de cada uma das partes. Não uma qualquer luta «contra o nazismo» – extremistas de direita há-os em ambas as partes, infelizmente – que só existe na cabeça de uns quantos, distribuídos entre crédulos e tontos.