Nas últimas décadas, algo de análogo impacto apenas terá ocorrido com a queda do Muro de Berlim e o ataque às Torres Gémeas. A invasão da Ucrânia pela Rússia é um daqueles raros episódios que de imediato se percebe sinalizarem uma viragem histórica. É fácil entendê-lo quando é já evidente o seu efeito no equilíbrio global geoestratégico, na política energética, na aproximação entre governos há pouco desavindos e principalmente na vida e no bem-estar de largos milhões de seres humanos. Não custa perceber que a União Europeia, a NATO, e também a Rússia, além da exangue Ucrânia, jamais serão o que foram até serem disparados os primeiros mísseis russos sobre Kiev na madrugada de 24 de fevereiro de 2022.
O que está a acontecer marcará também um momento de dramática mudança no modo como se organiza, distribui e legitima um segmento importante da opinião e do pensamento de parte da esquerda. Está aqui em causa aquele setor, pequeno, embora extremamente ativo, e por este motivo bastante percetível, que sobre esta guerra se distribui por três diferentes posições. Associadas, como se verá, a uma causa comum.
A primeira posição engloba os que imaginam na Rússia a continuação dessa velha União Soviética pela qual continuam a sentir profunda nostalgia, bem como uma força capaz de se opor ao odiado imperialismo norte-americano, o único do mundo pós-Guerra Fria cujos malefícios conseguem enxergar. A segunda posição abrange os que concentram os seus anseios de justiça nos espaços do planeta onde os conflitos armados e a injustiça são estruturais, considerando irrelevante, quase obsceno, que se confira tão grande importância a algo que acontece no coração do inexoravelmente «maléfico» Ocidente.
Já a terceira posição, se defende o restabelecimento da paz, condenando o caráter tirânico e imperial do regime de Putin e considerando intolerável a agressão a um Estado soberano, entende que existe razoabilidade nos argumentos da Rússia a propósito dos seus objetivos «defensivos» lançados contra os interesses estratégicos dos EUA e da NATO. Aceitam então que se lhe façam cedências, nomeadamente quanto à redução da soberania ucraniana e ao recuo político da União Europeia. A causa comum a estas três atitudes consiste no entendimento partilhado dos Estados Unidos como principal fator imperial de desigualdade e de desequilíbrio, considerando defensável, ou pelo menos útil, que outros impérios afrontem o seu poder.
É na relação com estes três segmentos que se enquadra uma crise de consciência, vivida por muitas pessoas situadas no campo da esquerda – de políticos e comentadores a intelectuais e académicos, e de militantes de partidos que têm acolhido aquela leitura a cidadãos comuns – que foi ampliada pela presente guerra. Com um conflito armado desta dimensão e natureza, e em sério perigo de alastrar, instalado na Europa, onde tudo é mais facilmente visível e por este motivo o choque rapidamente se instala, as ambições e os métodos de Putin e do sistema oligárquico que o sustenta são percetíveis de um modo diferente do registado na «longínqua» Síria, quando ali segurou o aliado Assad recorrendo a idêntica brutalidade. Nestas circunstâncias, um crescente número de pessoas honestas está a rever de que lado deve situar a sua consciência.
Em 10 de dezembro de 1957, no enérgico e emotivo discurso proferido em Estocolmo quando da entrega do Nobel da Literatura, Albert Camus afirmou que «a paz é o maior dos bens, todavia ela não pode trazer consigo a servidão». Na situação que o mundo está a viver – assistindo nós a ela, aqui na Europa, em lugar de primeira fila – é fácil perceber que, se uma negociação da paz é o único caminho possível, de modo algum ela pode assentar numa conciliação com o agressor e algoz do povo ucraniano.
Talvez a consciência daquela parte da esquerda ocidental possa aprender observando nos livros e documentários de história as consequências e as perdas que no verão de 1939 envolveram a assinatura, pelos representantes de Hitler e Estaline, do pacto que determinou a partilha e o martírio da Polónia. Em carta a Jean-Paul Déron datada de 1950, o mesmo Camus lembrou que começara a Segunda Guerra Mundial como pacifista, mas a finalizara como resistente, provando que as duas escolhas são necessárias e compatíveis.
Rui Bebiano
Saído no Público de 29/3/2022