A história vive um tempo de grandes ambiguidades. Se é verdade que nunca foi tão pública – omnipresente no discurso político, no cinema e na literatura, até na publicidade –, ao mesmo tempo é banalizada, factualizada ou manipulada a uma escala nunca vista. A banalização reduz tudo a ela, chegando ao ridículo de usar como referente «histórico» episódios da vida pessoal ou momentos de um jogo de futebol. A factualização remete para uma observação do passado limitada aos factos mais sonoros, sem trabalho de contextualização e de análise crítica. Já a manipulação respeita ao modo como as referências ao passado servem sobretudo para legitimar interesses do presente.
Estes três desvios diminuem a história enquanto forma de conhecimento, uma vez que esta tem, como condição fundamental para não ser uma mera colagem de situações vividas e evocadas, não apenas a existência de meios de prova – podendo ser imaginada, jamais é inventada –, mas sobretudo a consideração do que se chama historicidade. Indo ao essencial, pode dizer-se que esta se explica de dois modos: por um lado, corresponde à inscrição dos acontecimentos do passado no seu tempo e nas suas circunstâncias, aceitando que estes jamais se repetem e variando de acordo com as épocas; por outro, respeita à noção do trajeto humano através do tempo como contínuo e progressivo, emergindo do passado e sendo projetado em relação ao futuro.
Afirmar, em relação a episódios que presenciamos, que «sempre foi assim», querendo com isto dizer que, na realidade, pouco ou nada muda, é um erro enorme, pois isto, não só não é verdadeiro, como serve para legitimar a apatia e a incapacidade de trabalhar para um aperfeiçoamento das sociedades. Porém, é justamente isto que defende o chamado «presentismo». Este termo, cunhado pelo historiador François Hartog no livro «Regimes de Historicidade», de 2003, define-se como representando a experiência atual do tempo, na qual o futuro deixa de suscitar qualquer esperança nos indivíduos, restando única e exclusivamente o presente como instância de orientação da experiência humana. A vida coletiva deixa, desta forma, de ser projetada no sentido da sua gradual melhoria, desde o passado até ao futuro, limitando-se à mera gestão do dia a dia.
Aceitando esta perspetiva, chegaríamos a uma situação análoga à proposta em 1989 por Francis Fukuyama, quando recuperou uma velha expressão do filósofo Hegel e, atribuindo-lhe um outro sentido, propôs a hoje desacreditada teoria do «fim da história». Esta considerava que o capitalismo e a democracia representativa coroavam e fechavam o desenvolvimento da história humana, não dando mais lugar a que qualquer outro regime económico-social ou modelo de governo, passando cada novo presente a replicar aquele que o antecede. O presentismo, do qual, aliás, Hartog falava de uma forma bastante crítica, retoma de certa forma esta ideia, considerando a impossibilidade de alterar em profundidade a ordem do mundo.
O conceito serve para compreender erros de análise sobre a guerra de invasão da Ucrânia. É de presentismo que se fala quando certas interpretações a resumem a um conflito de gestão de natureza essencialmente regional, onde não deveria haver lugar para a intromissão de países que não apenas os dois envolvidos. A paz seria, assim, desde que da parte de ambos existisse vontade, fácil de negociar. A verdade, porém, é que, colocada em contexto histórico, esta guerra é, de facto, um episódio da nova «Segunda Guerra Fria», cujo lastro entronca no final da anterior, ocorrido há já mais de três décadas, e que tem sido projetada desde a chegada de Putin ao poder. Um duro e imprevisível confronto latente, envolvendo a Rússia, a China e os Estados Unidos enquanto potências imperiais, com a União Europeia como parte do terreno de batalha. O conflito possui, pois, uma escala global e transtemporal e só nesta pode ser entendido.
Rui Bebiano
Fotografia de Kizuki TamuraPublicado no Diário As Beiras de 2/4/2022