Sabemos como numa guerra não existem lados limpos da mentira e da crueldade. Se isso acontecesse, não se trataria de uma verdadeira guerra. É, desde logo, necessário contar com a propaganda e a contrapropaganda, que tendem a beneficiar ou a defender um dos lados em detrimento do outro. Quem delas não se servir, perde a guerra. Mas deve também contar-se com as dinâmicas inerentes ao combate e a quase impossibilidade de evitar situações de crueldade. Diz-vos isto alguém que já foi militar e esteve dentro de uma guerra civil, onde, como se sabe, tudo é sempre ainda pior que numa guerra com claras linhas de fronteira. Estive em áreas de combate e vi matar pessoas, civis entre elas, em alguns momentos através de gestos de descontrolo que advinham da tensão ou da incompreensão de quem pensava que a melhor forma de não morrer era «simplesmente» matar, ou só sentia vontade punir alguém que, na sua desrazão, considerava responsável pela morte de camaradas ou apenas por estar ali.
Tudo isto para dizer que os testemunhos na primeira pessoa que chegam da cidade de Bucha nada têm de confundível com outra coisa que não seja, sem qualquer dúvida, um massacre indiscriminado, sobretudo de civis, que foi perpetrado pelo invasor. São largas centenas de jornalistas profissionais identificados a filmar e a fotografar, são os sobreviventes, em estado de choque, a contar os detalhes e a levar quem visita a cidade aos locais. São também pessoas da região, que jamais conseguiriam encenar uma situação daquelas, como alguma gente fanatizada sugere que talvez tivesse acontecido, a contarem o que aconteceu. Como seria possível produzir uma mentira dessa dimensão e guardar em segredo a suposta «verdade», a que o governo russo e os seus defensores propalam, para todo o sempre? De pouco adianta, pois fanático é fanático, mas ainda assim talvez recomende a quem acredita em tal versão que ao menos tenha vergonha e se cale.
Fotografia de Miguel Manso, em reportagem no terreno com Luciano Alvarez para o Público; entrada da cidade de Bucha, ontem, segunda-feira, 4/4/2022