Aconteceu já em vários outros momentos nos quais o Partido Comunista Português tomou posições que nos planos interno ou internacional foram ética e politicamente retrógradas ou objetivamente antidemocráticas, acabando a defender escolhas conservadoras ou mesmo regimes despóticos e assassinos. No meu tempo de vida, desde a defesa da invasão da Checoslováquia pelos tanques russos em 1968 que isto acontece periodicamente, levando ao afastamento de muitas pessoas que num dado momento reconheceram o lado justo, necessário e até heroico do partido. Desta vez é a posição face à agressão lançada contra a Ucrânia e o seu povo que tem levado um bom número de cidadãos – muitos deles pessoas que no passado até votaram no partido e simpatizaram com algumas das suas posições – a considerar que «foram ultrapassados todos os limites».
Sucedem-se as escolhas erradas: declarações ambíguas sobre uma «paz» que, pela forma como é proposta, corresponde de facto à aceitação da derrota e à capitulação da soberania da Ucrânia perante o agressor; uma defesa da indiferença e da ausência de auxílio militar e humanitário da União Europeia para fazer face à invasão e às suas consequências dramáticas para a martirizada população ucraniana; o assumir de uma atitude de verdadeira conciliação frente aos interesses agressivos do regime imperial e tirânico de Vladimir Putin, com menosprezo por um país barbaramente agredido. Diante delas, muitas estão a ser as vozes – uma vez mais, algumas que têm votado no partido ou reconhecido a sua importância para a democracia – que qualificam essas escolhas de «suicídio político», como sinal de desnorte e caminho para um fim que julgam anunciado.
Compreendo essa indignação, que partilho com veemência, mas penso que estes juízos não têm em conta a especificidade do PCP. Se as legislativas tivessem ocorrido após os mísseis russos terem começado a ser lançados sobre Kiev sem qualquer posição de condenação do partido, o seu resultado eleitoral teria sido, sem dúvida, muito pior do que aquele que teve a 30 de janeiro. Todavia, falar agora de um completa derrocada é exorbitar bastante da capacidade de previsão, uma vez que, não apenas pela sua história de mais de um século e pela sua articulação com a vida sindical e a defesa dos trabalhadores, mas também, e sobretudo, pela sua coesão política e ideológica, ainda que esteja a perder muito apoio o PCP conservará sempre um núcleo de fiéis militantes, fazendo com que qualquer antecipação de uma hipotética morte seja sempre manifestamente exagerada.
Só quem não conhece o rígido e defensivo edifício doutrinário, as ideias repetidas como elementos de crença, a estrutura mítica em que se apoia, a informação «alternativa» que faz circular entre os seus condicionando a sua noção de verdade, a «língua de pau» pronta a usar de que se serve diariamente na propaganda e nas declarações públicas, o encarar da sua missão histórica como dotada de uma dimensão salvífica, messiânica e inelutável, poderá pensar que nos anos mais próximos o PCP se tornará um mero grupúsculo. Porque, ainda que cada vez mais barricado numa cultura própria, olhando todo o universo político do qual poderia aproximar-se como inimigo e estruturalmente «anticomunista», um núcleo importante das pessoas que nele acreditam precisa de um esteio para as suas vidas, de um instrumento visível em condições de alimentar, no plano das certezas, a sua conceção do fluir do mundo e do sentido da história.
Não se pense, além disso, que essa rigidez é um problema sobretudo geracional, e que a renovação do partido pela ordem natural das coisas trará alterações no sentido de uma perspetiva mais maleável, contemporânea e humanista da intervenção política. De facto, as novas gerações de quadros e de militantes ativos – basta seguir o seu discurso e a sua prática política, bem visível, por exemplo, nas redes sociais – são em regra ainda mais rígidas e intolerantes do que aquelas que as antecederam, a quem a vida foi em regra ensinando alguma maleabilidade. Não deveria acontecer desta forma, sem dúvida, mas os sinais de entrincheiramento estão a aumentar, e as posições agora tomadas sobre a Ucrânia são um sinal desse caminho de uma só via. Com ele, infelizmente, a crença e a intransigência de grupo tenderão de igual modo a avolumar-se. Os erros políticos também.