Não é apenas por trabalhar profissionalmente sobre história contemporânea. Lembro-me perfeitamente da atenção pessoal que prestava à política internacional daquelas décadas, anteriores à queda do Muro de Berlim, em que o governo da União Soviética tudo fazia para, em relação à iniciativa externa norte-americana, mostrar como vantajosa, ou pelo mais aceitável, a supremacia dos republicanos. Apresentava-se sempre muito mais aberto a propostas das administrações de Washington que vinham do lado do partido do elefante.
A razão era simples e dupla. Por um lado, a supremacia nos Estados Unidos dos setores mais conservadores, de direita e defensores do armamento alimentava a continuação da Guerra Fria e da divisão do mundo em blocos políticos e áreas de influência, particularmente importante para Moscovo quando na competição económica e militar a sua desvantagem aumentava a cada ano que passava. Por outro, a posição mais maleável dos democratas em certos temas enfraquecia a sua primazia, em alguns países e em muitas consciências, como instrumento «da democracia, do progresso e da paz».
É curioso ver como agora alguns partidos e determinados cidadãos saudosos da antiga URSS e adeptos do antiamericanismo mais primitivo mantêm posição análoga ao declararem – basta escutar certas declarações e ler o que muitos escrevem nas redes sociais, onde é fácil dizer sem grandes retoques o que realmente se pensa –, que a eleição de Biden «foi um desastre para o mundo», chegando alguns a embarcar na teoria trumpista da fraude eleitoral. Divulgam mesmo sem problemas caricaturas com Joe Biden representado com o pequeno bigode de Hitler.
Embarcam na defesa de uma partição do mundo entre Washington e Moscovo como se essa divisão, agora quase na forma de uma segunda Guerra Fria, mantivesse sensivelmente os mesmos contornos políticos, sociais e culturais que detinha há cinquenta anos. Como se o mapa global das tiranias, das ditaduras e dos impérios fosse hoje o mesmo que foi nos tempos da original. Por esta inadequada compreensão apoiam intimamente a política agressiva de Putin, e expressamente o desarmamento unilateral da NATO e uma iniciativa inócua União Europeia.
Rui Bebiano