Regresso ao tema que está a condicionar as nossas vidas, incluindo, seja qual for a evolução que venha a tomar, as de quem faz todos os possíveis por dele se alhear ou para ele inventar soluções irrealizáveis. No contexto da guerra de agressão da Rússia sobre a Ucrânia, tem sido amplamente comentada a posição do PCP, dos seus dirigentes, e mais acentuadamente, a título individual, a de muitos dos seus militantes e simpatizantes. Favorável, de facto, em nome de uma paz que representaria a derrota do país invadido, a submissão do seu povo e uma vitória para o renascido imperialismo russo, à agressão que está em curso, com o seu cortejo de horrores e a sua avalanche de pesadas consequências.
A justificação prende-se em larga medida com a nostalgia de um mundo bipolar, pré-1989, na qual existia um lado inequivocamente «mau», representado em primeiro lugar pelo imperialismo norte-americano e os seus aliados, e outro, sem dúvida reputado como «bom», que tinha a antiga União Soviética e os Estados do socialismo real como expressões de sociedades perfeitas e exemplares. Sem atenderem à realidade do que é hoje a Rússia de Putin, muitas dessas pessoas tomam a eventual derrota da Ucrânia como uma vitória sobre os EUA e o capitalismo, assim aproximando o hipotético retorno a um passado que continuam a admirar. A partir daqui todos os «argumentos» de Putin servem para justificar a escolha que fazem.
Recordo quatro deles. Em primeiro lugar, o pseudo-«nazismo» dominante na Ucrânia, entre os seus dirigentes, exército e povo, já amplamente rejeitados com números e factos (nas últimas eleições os partidos de extrema-direita reuniram apenas 1,9% dos votos); em segundo, a proibição de alguns partidos políticos ucranianos, todos pró-russos e que estavam a funcionar como quinta coluna de Moscovo (a proibição do partido comunista é, aliás, anterior à presidência de Zelenski); em terceiro, a construção de uma teia de mentiras sobre o suposto massacre de cidadãos de origem russa no leste do país, quando de facto o que ocorreu depois de 2014 foi, para além da ocupação da Crimeia, um conflito localizado com grupos armados pró-russos que naquela região visavam cortar laços com Kiev; e em quarto, o argumento mais consistente com o pressuposto atrás adiantado, a eventualidade de uma adesão da Ucrânia à NATO e à União Europeia, colocando estas na fronteira de uma Rússia agressivamente imperial, já não anticapitalista, mas anti-«ocidente».
Para um grande número de cidadãos, todavia, essas posições do PCP e seus próximos têm sido classificadas como absolutamente «inaceitáveis», ou mesmo «muito surpreendentes», sendo comum referir-se a forma como, pessoas tomadas como honestas, racionais e amigas da justiça são capazes de partilhá-las de forma considerada cega. Assim tem acontecido, de facto, com situações de todo alheias a um esforço de razoável compreensão. Todavia, a explicação para tais escolhas e comportamentos não é difícil de apresentar, podendo ser resumida a três vetores.
Em primeiro lugar, ao facto de não apoiar a ideia de um regresso do projeto imperial da Rússia de Putin ser visto por esses setores como traição do ideal antiamericano e anticapitalista sobre o qual repousa o essencial do seu imaginário cultural e da sua identidade política. Em segundo, a uma espécie de «toque a rebate» em defesa do próprio partido, atacado por todos os lados pelo facto de colocar as suas escolhas neste domínio a reboque de interesses geoestratégicos apenas partilhados por regimes tirânicos. E em terceiro a total subordinação, como espaço de verdade alternativa onde encontra justificativas para a sua escolha, à lógica da propaganda e da mentira imposta pela máquina de propaganda da tirania putiniana, associada a uma perspetiva distorcida do mundo proposta por alguns partidos e movimentos comunistas mais ortodoxos, como é o caso do português.
A partir daqui, é fácil cair no descalabro total da argumentação, que chega a incluir processos de revisão verdadeiramente alucinantes da história. Que passam por uma tentativa de anulação da identidade histórica nacional ucraniana – reconhecida, aliás, pelo próprio Lenine – ou por uma demonização dos Estados e governos que se opõem ao lado da guerra pelo qual tomam partido. A última tendência neste domínio, em casos que parecem saídos de mentes enlouquecidas, passa pela culpabilização dos aliados pelo início da Segunda Guerra Mundial e pela total desvalorização do esforço de guerra dos Estados Unidos, essencial – a par do da União Soviética, sem dúvida – para derrotar Hitler, inclusive com o sacrifício da vida de cerca de 300.000 soldados seus.
Uma curta mas importante adenda: o facto de se defender a Ucrânia da agressão de que está a ser alvo e de apoiar os seus refugiados não significa, naturalmente, a total concordância com o que pensam, dizem e fazem o governo de Kiev, os ucranianos no seu todo e as suas organizações representativas. Todavia, como declara o conhecido e sábio ditado, «em tempo de guerra não se limpam armas».
Rui Bebiano