Está por fazer, e talvez pudesse dar até uma curiosa e bastante útil tese académica em ciência política, em filosofia ou em história contemporânea, um inventário crítico da literatura que, nestes domínios do conhecimento, os nossos militantes amigos de Putin – entre aqueles, reconhecidamente uma minoria, com hábitos de leitura para além dos títulos dos jornais, das redes sociais e da imprensa partidária – alguma vez lê, leu ou lerá. Não apenas em termos de qualidade de conteúdo, de rigor e de abertura ao fluir do mundo, mas também no que respeita à atualização das obras que conhecem, à honestidade dos seus autores e ao vocabulário de que se servem.
Trata-se de um campo cultural geralmente fechado sobre si, que apenas quem está ou alguma vez esteve por dentro dele ou nas suas margens consegue conhecer e decifrar. Onde predominam textos geralmente datados e profundamente marcados pela ideologia. Estes educam inclusivamente os militantes mais jovens, alguns com menos de vinte anos e já formatados na «língua de pau» e numa visão do mundo absolutamente unívoca. Trata-se, na maioria dos casos, de gente de um conhecimento limitado, mas convencida que «sabe», pois teve acesso a determinados textos ou a informação interna onde, para si, «tudo» se encontra explicado. De um modo simples e linear, aquele que é capaz de reconhecer.
É isto que permite compreender que muitas dessas pessoas sejam incapazes de distinguir a verdade da mentira. Para elas, a primeira está associada à prova dos factos e das ideias nos quais acreditam, enquanto a segunda está ligada a tudo o que os possa contradizer, ou que abra para possibilidades alternativas. Por isso vejo textos meus, associados à história heroica dos cem anos da Revolução de Outubro, que resultam de trabalho profissional de historiador, de muitos anos de leituras e reflexão, de milhares de livros e artigos de especialistas reconhecidos lidos na íntegra, da análise de inúmeras fontes documentais identificadas, serem qualificados como «propaganda» e a informação neles contida encarada como uma «falsificação». Como afirmava há dias uma dessas boas almas prosélitas, «falsamente desmontável».
Muitos conhecem a expressão «ignorância atrevida», mas nesta era da informação, é particularmente chocante ver como ela habita mesmo um campo político que, de modo paradoxal, nasceu precisamente da luta pelo conhecimento e pela emancipação que, como se esforçou por provar o próprio Karl Marx, este ajuda a construir. Comprovando este panorama que a manipulação da informação e do conhecimento, ou a confusão da verdade e da mentira, não são um exclusivo apenas das correntes políticas associadas à direita e ao populismo. Tempos difíceis, estes, para quem estuda, se esforça por conhecer e procura partilhar os resultados desse esforço com os demais. Mas são também tempos desafiantes.
Rui Bebiano