Escrevo ainda sobre a guerra na Ucrânia, tema que tenho reiteradamente abordado nas últimas semanas. Não se trata de um epílogo, pois num futuro mais ou menos próximo muito haverá ainda a observar sobre as razões, as formas e as consequências deste episódio que marcará o nosso tempo, mas de uma sinopse onde se destacam algumas linhas de análise.
Parece impossível, mas a invasão, que segundo a cândida previsão de um general comentador televisivo iria ir durar «três dias, cinco no máximo», completou três meses no passado dia 24. Na verdade, começara oito anos antes, em fevereiro de 2014, quando forças locais pró-russas, apoiadas por armamento e militares vindos de Moscovo, tomaram a península da Crimeia e parte do território do Donbass, internacionalmente reconhecidos como território ucraniano. Todavia, foi apenas nestes meses que o conflito se expandiu além daquelas regiões, com consequências que acompanham o cenário de destruição de um país e de intimidação de um povo, alargando os seus efeitos a toda a Europa e ao resto do mundo. A situação oferece-nos três lições e três alertas.
As lições clarificam tendências que muitos analistas têm reconhecido. A primeira confirma a transformação do mundo unipolar que sucedeu à derrocada da União Soviética numa coutada global para três imperialismos, o norte-americano, o russo e o chinês; o primeiro numa posição de continuidade, o segundo procurando reemergir e o terceiro em rápida expansão. A segunda comprova a tendência, num processo comparável ao da Guerra Fria, para um crescente antagonismo entre dois mundos, o das democracias liberais e o dos nacionalismos identitários. A terceira mostra que o antiamericanismo primário é alimentado, junto de alguns setores políticos, por uma nostalgia da União Soviética que tende a reforçar a parcialidade pelo agressor e a indiferença pelo agredido.
Já os alertas justificam um enquadramento mais completo. O primeiro refere-se à forma como este conflito transformou em evidência a forma como é fácil, quando as análises de política se afastam da vida das pessoas e se concentram apenas na abstração das teorias autossustentadas, trocar o óbvio pelo imaginado e perder a noção mais elementar do que são a verdade, o equilíbrio e o sentido de justiça. Esta deriva tem feito com que, desta guerra, pensadores respeitados e reconhecidos como de grande valia para uma compreensão crítica e solidária das dinâmicas do mundo contemporâneo estejam a sair, por incapacidade de adaptação da sua inteira responsabilidade, bastante desacreditados.
O segundo alerta é sobre o uso da mentira e da ignorância como ferramentas de imposição de um padrão de análise destinado a convencer as pessoas de que o certo está errado e o errado certo, sendo hoje esta prática transversal aos campos da direita e da esquerda. A manipulação da informação comprovadamente usada por Trump e Bolsonaro, ou pelos partidos e movimentos populistas e de extrema-direita europeus, como forma de intimidar ou de convencer o eleitorado, tem, no atual contexto de guerra, sido igualmente utilizada por partidos, movimentos e governantes formalmente de esquerda, que não têm hesitado em servir-se de «fontes de informação» sem credibilidade para validar um «antiocidentalismo» cego que neste momento é efetivamente pró-Putin.
O último alerta destaca a manipulação da história e da memória pelo governo russo, com cúmplices entre quem tem procurado legitimar os seus argumentos. Combina ingredientes: um ultranacionalismo a justificar a lógica imperial (o recurso às teses dos pensadores panrussos Nikolai Danilevski e Ivan Iline é ilustrativo), um ultraconservadorismo filo-ortodoxo assente na revisão da história da Rússia, um branqueamento da brutal repressão estalinista e a demonização dos ucranianos como «cúmplices do nazismo». Associados a estes processos estão o apagamento do Holodomor, a grande fome ucraniana ditada nos anos trinta pela coletivização forçada dos campos, e a dissolução da Associação Memorial, criada em 1989 em Moscovo para recolher testemunhos do sistema concentracionário do Gulag e reabilitar as suas vítimas.
Rui Bebiano
Fotografia de Michael MercerPublicado no Diário As Beiras de 28/5/2022