«Crítica» vem do grego kritikós, indicando a palavra aquele que está «apto a julgar». Manifesta-se na produção de uma opinião ou de um juízo de valor por quem a exerce. No campo das ideias, a «teoria crítica», expressão criada em 1937 por Max Horkheimer, é uma abordagem que, contrapondo-se à rigorosa separação das águas de matriz cartesiana, incorpora no pensamento tradicional uma tensão com o presente, de efeito criador e emancipatório. Na vida como professor, tenho insistido junto de quem escuta que a minha intervenção no espaço partilhado da aula, mais que destinada a comunicar saber, se destina a fazer com que cada aluno ou aluna seja capaz de usar o conhecimento para pensar por si e, seja na vida pessoal ou como cidadão, intervir de forma positiva e autónoma. Sublinho sempre: «criticar não é ‘dizer mal’, é dizer mais».
Todavia, para ser útil e positiva, a crítica não pode resultar apenas do desejo de quem a exerce remar contra a maré, esforçando-se, como diz o povo, por «ser do contra». Ela precisa de informação, de acesso ao contraditório e de reconhecimento da pluralidade das hipóteses, sendo este conjunto de fatores, a par da criatividade e da ousadia pessoal, a determinar a sua força e utilidade. De modo algum é problema dispor de interpretações diferentes sobre um mesmo tema, ou estar em condições de produzir leituras novas, pois jamais existe verdade única e nada é seguro ou irrefutável para sempre. Apenas as pessoas que vivem de uma fé, seja esta religiosa, política, filosófica, ou mesmo «científica», podem satisfazer-se com uma perspetiva monolítica da realidade, seja esta a passada, a presente ou a que se concebe como possível.
A pluralidade é então uma opção de vida, levando a que jamais se aceite algo como adquirido «para sempre» – seja uma escolha, uma ideia, uma interpretação ou mesmo um objetivo –, sem que seja possível ampliar, melhorar, contrariar ou substituir o que ali se encontra. Ela determina o padrão de intervenção pública de um grande número de homens e de mulheres que se dedicam a interpretar e a discorrer de forma livre sobre a história, os caminhos e os problemas do que é comum à vida social. Explica também a razão última pela qual, apesar de manterem um forte sentido de responsabilidade cívica, muitas dessas pessoas têm dificuldade, sem contrariarem o papel indispensável dos partidos políticos, em juntar-se a eles ou em aceitar de forma acrítica algumas das suas propostas.
Ao mesmo tempo, é empobrecedora e inútil a opção tomada pelos militantes e simpatizantes de partidos e movimentos que, dispondo de capacidade e meios para opinar de forma livre e dialogar com quem pensa de outro modo, se escusam a este esforço, limitando-se, no que publicam em jornais ou nas redes sociais, a servir de caixas de ressonância, escrevendo panfletos sem um pingo de reflexão pessoal, de criatividade e de abertura. Quem integra um partido deve ser solidário com a sua linha e decisões, mas de pouco serve – no plano da vida democrática como no da satisfação pessoal – refugiar-se no conforto do grupo e falar apenas para quem pensa da mesma forma e não quer ser surpreendido ou contrariado. Em Conhecimento e Interesse, o filósofo Jürgen Habermas viu na crítica uma ferramenta indispensável da autorreflexão e da emancipação; trocá-la pela monótona enunciação do previsível convida ao imobilismo e é uma forma de servidão.
Rui Bebiano
Fotografia de Samuel PoromaaPublicado no Diário As Beiras de 11/6/2022