Editado originalmente em 2016 e traduzido agora pela Zigurate, Quanto menos soubermos, melhor dormimos, do jornalista e historiador David Satter, possui um subtítulo bastante esclarecedor: «Do terror à ditadura na Rússia sob Ieltsin e Putin». Escrito por um destacado analista da realidade russa desde o período soviético, que viveu décadas em Moscovo até ser expulso em 2013, é livro de leitura compulsiva que de modo algum deixa indiferente quem o leia. Serve também de importante auxiliar para quem pretenda compreender o tipo de gente criminosa que governa a hoje terceira potência militar do planeta – depois dos EUA e da China – e a partir dela procura lançar um novo projeto imperial, ficando também a conhecer os seus métodos, simultaneamente tenebrosos e impensáveis num Estado de direito.
O volume segue um périplo que começa durante a perestroika, mostrada como um tempo de transformações perturbantes, mas ainda limitadas e de certa forma benévolas, centrando-se depois na ascensão e no governo do presidente Boris Ieltsin, e de seguida na ascensão e na afirmação triunfal de Vladimir Putin, terminando com a invasão da Crimeia. Os anos mais recentes, bem como a nova guerra de invasão da Ucrânia, não estão ainda presentes, mas está-o a formação das circunstâncias que, a partir de 1991, transformaram a Rússia num Estado autoritário apoiado na corrupção e no militarismo, usando a agressão externa, bem como a propaganda a ela ligada, como instrumentos para legitimar a opressão interna e para assegurar a continuidade do poder político supremo instituído.
Para Satter, a nova sociedade que emergiu da queda da antiga União Soviética possui essencialmente três caraterísticas marcantes: «uma economia dominada por uma oligarquia criminosa, um sistema político autoritário e, talvez mais importante do que tudo o resto, uma degradação moral que subverteu todos os padrões jurídicos e éticos e inviabilizou uma verdadeira sociedade civil». Com recurso a informação muito detalhada e identificada, apoiada em fontes russas omitidas na própria Rússia, mostra então a construção de uma paisagem que possui tanto de violento e assustador, quanto de capaz de contrariar a mais ténue esperança de que este conjunto de tendências possa ser invertido a curto prazo.
Sucede-se uma sequência vertiginosa, distribuída por cinco capítulos. No primeiro, o jornalista descreve uma situação que viveu de perto: a responsabilidade dos serviços secretos russos pelos atentados de 1999 em áreas residenciais, que depois legitimaram a repressão da Chechénia e a instalação simultânea do medo e de um poder sem limites. No segundo, Satter descreve a governação caótica de Ieltsin, que viu nas privatizações e na criação abrupta de grandes fortunas apoiadas na criminalidade a forma de impedir o regresso do «socialismo». No terceiro, aborda a ascensão de Putin e o modo como este instituiu uma forma de poder intensamente centralizado, baseado na sua própria autoridade e no apoio de pessoas, muitas de natureza criminosa e ligadas ao antigo KGB, cuja ascensão social e política dele dependia, enquanto destruía a informação independente e os grupos políticos concorrentes. No quarto mostra, de um modo mais detalhado, de que maneira os atentados chechenos de 2002 e 2005 foram mal resolvidos e, ao mesmo tempo, manipulados para reforçar ainda mais o poder de Putin. No último descreve todo o processo de controlo de informação e de alguns grupos locais para apoiar, com a conquista da Crimeia e do Donbass, a primeira fase do projeto putiniano de esmagamento da Ucrânia.
A quem se disponha a ler este Quanto menos soubermos, melhor dormimos, de particular utilidade para contrariar a propaganda de Putin, que no ocidente uns quantos tomam como aceitável ou mesmo como credível, o autor deixa uma curta recomendação: «Compreender a Rússia é fácil, mas precisamos de aprender a fazer algo que é realmente difícil – acreditar no inacreditável». Experimentei esta enorme dificuldade em cada uma das 208 páginas do volume e ainda não sei se consegui superá-la inteiramente.