Este é um olhar sobre os efeitos na opinião pública da guerra na Ucrânia, não «apenas mais um artigo» sobre esta. O conflito, que de início comentadores e especialistas militares acreditaram terminar em uma ou duas semanas, está a completar oito meses sem que se vislumbre um quadro de paz. De facto, o aparente desequilíbrio inicial, fundado na força bélica da Rússia, foi rapidamente contrariado por dois fatores: de um lado, a ajuda dos Estados Unidos, da NATO e da União Europeia ao governo de Kiev; do outro, a preparação dos militares da Ucrânia e a valentia do seu povo, que contam com a enorme vantagem moral de conhecerem o terreno e se oporem a um invasor. Ao mesmo tempo, a capacidade militar de Putin revelou-se bem mais frágil do que se supunha, compensando a debilidade com a ameaça do potencial nuclear e a mobilização de reservistas.
O arrastamento da guerra tem suscitado sucessivas ondas de choque, indo algumas bem além do que seria de supor. A dimensão da destruição da Ucrânia, em bens, vidas e expectativas, é colossal, e seja qual for o resultado da guerra ela demorará gerações a ser ultrapassada. O mesmo no que respeita à relação de confiança e colaboração entre ucranianos e russos, independentemente de quem os governe. Ao mesmo tempo, os reflexos em outros países, bem para além das regiões diretamente afetadas pelos combates, cresceu num volume inesperado, sendo principalmente a Europa a sofrer as consequências, com graves problemas com a distribuição de energia, o custo de vida, o crescimento da inflação, o bem-estar das populações, as despesas com a defesa e o horizonte de expectativas. Mas todo o mundo suporta as consequências do conflito.
Uma área específica tem, entretanto, vivido pesadamente os seus efeitos. Falo do modo como setores do comentário político e da opinião pública se têm posicionado, assistindo-se, neste domínio, a uma escalada de violência verbal e a uma exacerbação de disputas que vai muito para além da natural divergência das posições, chegando a afetar relações pessoais. Como caraterística comum, uma irrazoabilidade sectária que tende a simplificar e a extremar posições, tornando o debate muitas vezes impossível, sendo a argumentação trocada pela verborreia ou pela gritaria. Isto tem levado – em particular nas redes sociais, que hoje, mal ou bem, são um espaço crítico de informação e debate – a que muitas pessoas, agredidas ou injuriadas no plano das palavras, tenham passado a omitir o assunto, cedendo a voz a quem o aborda sem olhar a meios ou à clareza das razões.
Do lado do insulto, há de tudo. Quem afirme ser a Ucrânia o agressor e ignore que o conflito é, ao mesmo tempo, um combate entre imperialismos e um reflexo da luta global da democracia contra a tirania. Quem diga que todo o apoiante da Ucrânia é um acrítico seguidor de Zelensky, como se entre nós, perante a invasão armada por um país estrangeiro, quem lhe resistisse fosse fatalmente defensor do governo do momento. Quem afirme que a invasão russa «é uma seta cravada nas costas do capitalismo». Quem, por vezes com a «paz» na boca, volte impiedosamente as costas aos crimes perpetrados dia após dia, desculpando os seus autores. E quem faça tudo isto recorrendo sem vacilar à informação manipulada, à mentira e à ofensa. Neste cenário, todavia, o pior será sempre, para evitar zangas e aborrecimentos, passar a ignorar o tema. Defrontando a cegueira, devemos continuar a falar da Ucrânia.
Rui Bebiano
Fotografia: «Gathering», por Samuel PoromaaPublicado no Diário As Beiras de 15/10/2022