Na Anatomia da Melancolia, de 1631, o escritor inglês Robert Burton lançou as bases para entender os estados depressivos, dos quais, aliás, ele próprio padecia. Acreditava que a causa principal desse mal estaria na ociosidade, no que acompanhava aquilo que, sensivelmente pela mesma época, escreviam os tratadistas de arte militar empenhados em evitar estados de espírito que prostrassem os soldados e os afastassem da firmeza necessária na guerra. Declararam repetidamente esses autores que a melhor forma de manter os homens em estado de prontidão para o combate seria impedi-los de pensar em excesso na sua vida e no seu desgraçado destino. A imposição de tarefas constantes e severas que os ocupassem o tempo todo seria a melhor forma de os preservar desse mal inibidor da capacidade para agir.
Sabe-se hoje que a associação entre depressão e melancolia é abusiva, já que esta pode também induzir um desejo de ação. No final do século XV o humanista Marsílio Ficino considerou que ela poderia até ser um catalisador do génio, e o romantismo, como seria de esperar, alimentou a ideia. Victor Hugo entendia que a melancolia era ao mesmo tempo «um crepúsculo» e uma expressão da «felicidade de ser triste», enquanto, em O Vermelho e o Negro, Stendhal insistiu, na caraterização de Julien Sorel, o seu herói, que este se aborrecia no meio dos prazeres porque, para ele, só o que custava obter tinha valor. O «mal do século» romântico traduziu, na verdade, um estado de aborrecimento e de desilusão devastadoramente triste, mas que não levava à passividade, antes empurrando o indivíduo para a rebelião contra uma ordem do mundo julgada imperfeita.
Foi esta perceção que alimentou, durante boa parte do século XX, um certo culto da atitude melancólica e da sua expressão cultural, acompanhando-as de uma auréola que as associava à vontade de agir em favor da transformação da vida pessoal e coletiva. Várias gerações partilharam essa disposição, ainda percetível, no pós-Segunda Guerra Mundial, no comportamento ao mesmo tempo rebelde e entediado dos membros da Geração Beat ou dos seguidores do existencialismo francês. Olhamos fotografias dos seus ambientes e detetamos as marcas de uma tristeza aprazível, própria de quem fazia da reflexão uma forma de estar. «Adieu tristesse, Bonjour tristesse.», dois versos de um poema de Paul Éluard que inspiraria a obra-prima de Françoise Sagan, contém esse cunho de um amor partilhado no convívio diário com uma tristeza feliz. E Camus insistiu na dimensão solar que esta detém, nela situando a essência de uma fruição plena do mundo.
Todavia, algo mudou nas últimas décadas, invertendo esta escolha. Num tempo pautado, nas palavras de Pascal Bruckner, por uma «euforia perpétua», o «dever da felicidade» liga-se a uma imagética, próxima do conceito de «alegria» vindo do senso comum, que a deve sinalizar. Nas sociedades da abundância, mais do que ser-se realmente feliz, deve-se sobretudo parecê-lo, exibindo as marcas convencionais e fugazes da felicidade: sorriso aberto, polegar ao alto, brados ou saltos de júbilo, simulando viver num imenso parque de diversões. É o que vemos na voga das selfies, povoadas de alegria artificial e satisfação encenada. O psicólogo social Eric G. Wilson ergueu-se contra esta alegria permanente e fabricada, considerando-a uma espécie de Prozac para os cérebros, um antidepressivo inibidor da criatividade e do prazer de um genuíno júbilo, bem como desse momento mágico e inesquecível de «descobrir a alegria na escuridão».
Rui Bebiano
Fotografia de Samuel PoromaaPublicado no Diário As Beiras de 12/11/2022