Como a maior parte das pessoas sabe, embora nem todas levem esta perceção às últimas consequências, ficção e realidade constituem dimensões diferentes, ainda que sempre se misturem. Seja no domínio dos factos, das representações ou da linguagem. Jamais a ficção pode prescindir da realidade, pois é esta que lhe fornece os códigos básicos de comunicação. E jamais a realidade pode dispensar a ficção, pois sem ela não passaria de um conjunto de ocorrências mecânicas e sem sentido algum. Por isso não é possível deparar com ficção ou com realidade em forma pura.
Todavia, quem trabalha sobre a ficção – seja romancista, poeta, realizador, ator ou um mero contador de histórias produzidas a partir do quotidiano vivido ou legado – sabe que esta relação nem sempre é compreendida pelos outros. Muitas desses criadores, talvez mesmo todos, passaram pela experiência de encontrar alguém que lhes diz que o que contaram não deveria ter tomado aquele caminho, ou que mais cedo deveriam ter matado esta ou aquela personagem, ou que não gostam das falas de fulano. Outras vão mais longe, exigindo do criador que lhes relate, se possível com detalhes, o que aconteceu depois deste fechar a criação.
Creio que muitos dos episódios de vida que de forma muito livre aqui vou relatando padecem, para algumas das pessoas que os leem, da mesma confusão. Todo o contador de histórias «reais» sabe que, para que estas tenham algum interesse para os outros, precisa, no mínimo, de as adornar com um pouco de sal, algum exagero, uma hipótese impossível, uma perspetiva que só o correr da experiência forneceu. Deve também enfatizar certos aspetos, ignorando ou diminuindo outros, desse modo centrando o relato num objetivo de comunicação que é ele quem impõe, não a «verdade» tal qual ela aconteceu, seja no real vivido ou apenas na sua mente. O que não significa que esteja a mentir.
No espaço de partilha e comunicação das redes sociais deparo com frequência com algumas pessoas que me dizem frases como «olhe que não foi bem assim», «e que aconteceu depois?» ou «não acredito nisso». Que se pode dizer a alguém com este foco, apenas capaz de reconhecer clichés ou verdades secas, não distinguindo o adorno da invenção pura? Nestas situações lembro muitas vezes uma história, logo ali fechada para sempre, vivida com uma possível namorada, quando esta, tendo nós saído de uma sessão da «nouvelle vague» francesa, comentou desiludida: «mas não se percebe se afinal eles voltaram ou não a retomar a relação».
[Publicado originalmente no Facebook]