Esta semana, o centenário do nascimento de José Saramago deu lugar a um vendaval de artigos e comentários. Para além daqueles produzidos por quem o leu e, gostando ou não de o fazer, tem em conta a sua condição de autor único e dedicado ao seu labor, destacam-se os extremos. Refiro-me às pessoas para as quais qualquer coisa que tenha a ver com o autor ribatejano é inequivocamente positiva e sagrada, e às que do lado oposto, muitas vezes sem o lerem com atenção ou conhecerem a sua biografia, fazem juízos de valor negativos e absolutos sobre a sua escrita e escolhas. Não sou, nunca fui, e sempre o declarei, grande apreciador da sua obra, que no campo da ficção li praticamente na íntegra, mas respeito muito o seu trabalho criador e também, naturalmente, quem o aprecia, distanciando-me apenas por questões de gosto e sensibilidade.
Com Saramago tenho um curioso encontro-desencontro. «Memorial do Convento», o romance que o consagrou, o seu quarto, saiu em outubro de 1982. Logo no início do ano seguinte defendia eu, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o que então se chamavam «provas de aptidão científica e pedagógica» para a docência. O trabalho que nelas apresentei intitulou-se D. João V. Poder e Espetáculo e, apesar de defendido logo em 1983, viria a ser editado apenas em 1987. Em 1990 acabei por reescrever o livro, ao qual ainda juntei um capítulo completamente novo, alterando também o título, agora O Drama Político Joanino. Poder e Espetáculo no Portugal Barroco. Porém, esta nova edição nunca viria a sair impressa, uma vez que o editor, que se propunha produzir um álbum de luxo com muitas ilustrações, homem pródigo em delírios de grandeza, acabou por falir. Não sem antes me ter pago um adiantamento dos honorários, verba com a qual comprei o meu primeiro computador.
Então onde entra aqui José Saramago? O meu livro foi sobre a forma como o aprofundamento da autoridade política de D. João V passou em grande parte, como em todas as monarquias absolutas da época, por uma manipulação propagandística dos cerimoniais, das práticas de ostentação, da religião e da atividade cultural, tendo em vista uma exaltação pública extremada das capacidades e dos meios do rei. No volume fiz então a descrição de diversos episódios e atos públicos do monarca e da sua corte, nela incluindo um número imenso de detalhes que estavam, sensivelmente pela mesma altura, a ser usados também por Saramago para escrever o «Memorial». Nunca o encontrei pessoalmente, mas tenho a certeza de que pelo inícios da década de 1980, em diversas bibliotecas e arquivos, enquanto ele saía por uma porta eu entrava por outra.
Uma edição em pdf da versão de 1990 do meu livro, sem ilustrações, pode ser consultada e descarregada na ligação que se segue, tendo eu o dever de avisar o/a potencial leitor/a que já não escrevo daquela forma um tanto… barroca:
O Drama Político Joanino. Poder e Espetáculo no Portugal BarrocoRui Bebiano