Um ano de sofrimento, hipocrisia e esperança

Completa-se hoje um ano sobre o início da guerra na Ucrânia, determinada pela súbita invasão russa imposta pela política imperial e belicista de Vladimir Putin. Um ano que, na altura, apressados analistas, alguns deles oficiais generais, anunciavam ir durar «no máximo, uma semana». Um tempo determinado em primeiro lugar pela sistemática e brutal destruição de boa parte do país invadido, pelo imenso sofrimento do seu povo, pela devastação de vidas e de esperanças, e por um número, ainda indeterminado, mas na escala dos largos milhares, de mortos, entre civis e militares. Contando-se também entre estes muitos cidadãos russos, alguns deles mercenários e ex-presos de delito comum incorporados com a promessa de um perdão, embora a maioria sejam recrutas e reservistas incorporados à força, às dezenas de milhar, pelo regime de Moscovo.

Um ano no qual se materializou uma visível reconfiguração da política internacional. Desde logo reintroduzindo na Europa, pela segunda vez desde o termo da Segunda Guerra Mundial – a primeira, entre 1991 e 2001, foi o sangrento conflito civil na ex-Jugoslávia – uma situação de guerra prolongada, com um enorme cortejo de vítimas, atrocidades e destruição, além do cortejo imenso de refugiados. Ao mesmo tempo, o conflito tornou claras duas situações, uma expectável e a outra inesperada. A primeira é a confirmação da política autoritária e imperial de Putin, que reconduziu a Rússia à condição de Estado privado de liberdade e altamente agressivo no plano externo. A segunda é a reação rápida e unânime de quase toda a Europa, expressa, ainda que em consonância com a política externa dos EUA, numa atitude de defesa dos princípios essenciais da democracia liberal e da soberania que não se via também desde 1945. 

Mas um ano também de profunda hipocrisia. Desde logo a de muitos governos e partidos que, formalizando o apoio à Ucrânia, têm protelado medidas efetivas em prol da sua defesa armada perante a invasão e de apoio aos seus refugiados. Depois a dos partidos – entre nós, o PCP e alguns dos seus companheiros de jornada – que, em nome da luta contra o imperialismo americano, que vêm anacronicamente como único fator de domínio e de agressão dos povos no mundo atual, têm posições de defesa efetiva de Putin e de ataque ao governo legítimo ucraniano, acusando este de posições de extrema-direita que não tem, enquanto ignora os setores deste quadrante que, na Rússia e no exterior – Trump e Bolsonaro foram exemplo –, têm apoiado o novo czar. E também a das correntes e individualidades de esquerda, que se dizendo em favor de uma «paz abstrata», na realidade, em nome de um antiamericanismo cultural atávico e que ignora a definição do inimigo principal, «piedosamente» defendem, na prática, que os ucranianos sejam entregues a si próprios.

Acima de tudo um tempo de honra, dúvida e esperança. De honra aos que combatem o invasor, mesmo discordando muitos deles de algumas decisões do governo de Kiev, em defesa do seu país e do seu povo. De dúvida sobre o caminho que a curto prazo irá tomar um conflito que se prevê inevitavelmente prolongado e duro. De esperança pela certeza de que, exacerbadas à saciedade as posições dos dois lados, se tornará claro quem realmente defende, no essencial, o lugar da democracia e dos direitos dos povos, ou quem apenas os tem na boca quando a vontade de domínio e a afirmação do dogma impõem essas palavras, embora sem efetivamente antidemocráticos e indiferentes à vida de quem se bate pela paz e pela liberdade. 

Rui Bebiano

Fotografia: Alamy.com

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