Quando comecei a decifrar as letras tornei-me logo um leitor voraz. Por isso a minha perspetiva do mundo confunde-se com a imaginação, a dúvida, a experiência e os saberes proporcionados pela leitura intensa e quotidiana. Sem ela, jamais teria conhecido tantos lugares distantes, nunca teria voado sobre falésias e despenhadeiros, navegado até outras épocas e planetas, conversado com personagens de romance ou medido a extensão do real e do irreal. Também pouco ou nada saberia da história do mundo e do seu legado, de outras línguas, de filosofias que libertam, do imperativo das utopias e da infinita diversidade do humano nas escolhas e na subjetividade. Habitaria apenas realidades expectáveis, servo de destinos que não entenderia e jamais poderia contrariar.
Daí a mágoa que sinto de cada vez que observo a vida pequena de quem não lê e nem sabe o que alcançaria se o fizesse. Num panorama que tem vindo a crescer mesmo em campos, como o do ensino universitário, onde tem aumentado a percentagem de quem não possui hábitos de leitura ou que lê sem sentido crítico e apenas por dever. É claro, todavia, que a força da imaginação não é libertada apenas pela leitura convencional. A pluralidade das tecnologias da comunicação permite hoje aceder por diferentes vias a módulos de conhecimento, aos quais, na forma tradicional, jamais se chegaria. Ainda assim, nada existe que substitua a leitura silenciosa, imersiva e pessoal, feita no papel ou por via eletrónica, capaz de reunir em cada consciência experiências fortes e únicas.
Para ser completa e criadora, a vertigem de conhecimento proporcionada pela leitura requer, entretanto, uma variedade de sentidos e expressões. Não pode ser tolhida pela censura ou pela destruição dos «livros perigosos» – como no romance distópico Farenheit 451, de Ray Bradbury –, mas também não pode ser sujeita a deformações impostas pelo pensamento dominante ou pela «presentificação» do passado, adaptado a uma visão depurada da linguagem, como a «novilíngua» aludida por Orwell em 1984, que molda a realidade. Para quem assim pensa, escreveu no Público a colunista Maria João Marques, «os leitores não podem ser confrontados com o que é ofensivo e fora das lentes atuais, não devem aprender que o mundo nem sempre foi como é agora, que as circunstâncias políticas e sociais mudam e o quadro de valores das comunidades evolui.»
Promovem-se reedições e reescritas de textos, escritos no passado, por vezes até de clássicos do pensamento ou da ficção, que omitem realidades hoje julgadas inadequadas ou ofensivas, alterando-se palavras ou formulações. E apagando-se mesmo o que não agrada se detiver um conteúdo julgado racista, antissemita, machista, colonialista ou com pecados relacionados com formas atuais de não-exclusão. Como se a diversidade do mundo, a sua aprendizagem, e acima de tudo a capacidade para discernir o certo do errado ou o justo do injusto, não passasse por três operações cruciais: a perceção da diversidade contraditória de tudo; o conhecimento daquilo que merece ser criticado; e a capacidade para, avaliando todos os fatores, definir em liberdade uma escolha própria.
Neste contexto, a recente iniciativa – apenas mais uma entre muitas análogas – de reeditar os livros de Ian Fleming, o criador de James Bond, depurando-os de expressões e de palavras julgadas inapropriadas, é absurda e perigosa. Mesmo como personagem de ficção, o Agente 007, e as aventuras que vive no papel e no ecrã, representam valores, linguagens, políticas e tipos do tempo em que foram criados, deixando num outro contexto e com outro rosto de ser o que são. Por este caminho, todos os livros deveriam ser revistos e os seus autores criticados e corrigidos, quando não, se «necessário», ocultados ou riscados de catálogos e bibliotecas. Os novos leitores viveriam assim num mundo assético, sem passado ou escolha, como seres cegos e sem capacidade crítica, prisioneiros do pensamento único.
Rui Bebiano
Fotografia de Veronika TumovaPublicado no Diário As Beiras de 4/3/2023