Em todas as sociedades ocorrem formas de sacralização que moldam as diferentes escolhas culturais e as relações sociais. Elas tendem a tornar sagrado e a transformar em objeto cerimonial e de culto aquilo que deveria, pois é essa a sua origem e também a sua finalidade, permanecer natural e essencialmente humano. Há mais de um século, a ideia de sagrado foi apresentada por Émile Durkheim como o oposto do profano, representando – ao contrário deste, que o sociólogo francês considerava um modo de intervenção do sujeito individual no mundo – um processo que afeta sobretudo a vida dos grupos, estabelecendo normas que forçam ou constrangem determinados comportamentos. Sirvo-me de dois curtos exemplos para abordar o processo e as suas perniciosas consequências.
O primeiro refere-se à sacralização do livro e da própria leitura. Desde a invenção da escrita que esta, bem como os objetos que a suportam, foram associados ao sagrado, seja através de textos de natureza religiosa ou daqueles que relataram acontecimentos mitificando os seus protagonistas. Ao longo de milénios, o papel do livro como instrumento de conhecimento e de autoridade tendeu a reforçar essa caraterística, e mesmo as correntes do pensamento laico ou contracultural que se expandiram entre os séculos XVIII e XX reforçaram esse impacto. O livro e a leitura, bem como os saberes e propostas que lhe estão associados, tornaram-se, em quase todas as culturas, instrumentos de prestígio que envolveram numa auréola de sagrado quem escrevia, divulgava e lia.
A revolução comunicacional dos últimos cinquenta anos tem vindo, entretanto, a reduzir o prestígio e o impacto da leitura física tradicional. O surgimento de novos suportes, em particular o do digital e o conferido pelas redes, a crescente velocidade da informação, a aceleração do tempo que esta provoca, bem como as estratégias de um saber que cresce em quantidade, mas circula de forma cada vez mais fragmentada, reduziram imenso o seu prestígio e impacto. Perante esta realidade, a solução não pode, porém, ser encontrada na tentativa, por bem-intencionada que esta possa ser, de recuperar os antigos processos. Diante das novas gerações, a celebração da leitura tradicional acaba por ser contraproducente, conduzindo até ao desinteresse por processos que já não são os seus. Hoje, sacralizar a leitura sem a adaptar aos novos meios e expetativas, é ajudar a matá-la. «Ler é um contrato social», escreveu Alberto Manguel, o que implica uma adequação ao tempo e aos modos em que este se estabelece.
O segundo exemplo é a forma como se procura transmitir às novas gerações, ou recordar às demais, o combate pela democracia que precedeu o 25 de Abril e a história complexa e épica do período revolucionário de 1974-1975. A um ano do cinquentenário da data fundadora da nossa democracia, o pior serviço que pode fazer-se em prol da sua evocação é dar desse combate, dos seus momentos críticos e dos seus resultados, uma noção cerimonial e sagrada, mitificada, que já só uma minoria entende e é capaz de sentir. O que há fazer para junto dessas pessoas estabelecer um vínculo com a democracia, a liberdade e vida cívica – e também para reconhecer a memória dos que por ela se bateram – é limpar a dimensão protocolar, nostálgica e de sagrado associada a esses conceitos. Ao invés, será o conhecimento do passado concreto, associado à perceção dos problemas atuais, colocados ambos na dimensão do profano, que permitirá redimi-los.
Rui Bebiano
Fotografia de Michael M., WindowlightPublicado no Diário As Beiras de 15/4/2023