Todos os regimes autocráticos firmam a sua autoridade no uso arbitrário da força, na eliminação da divergência e na disseminação do medo. Para o conseguirem recorrem ao que Foucault chamou os mecanismos da microfísica do poder, combinação tóxica de vigilância hierárquica e sanção normalizadora que dá corpo à disciplina. Esta foi sempre particularmente severa sob as tiranias e as ditaduras, em especial naquelas que incorporaram o complexo totalitário, capaz de impor, nas palavras de Hannah Arendt, «uma dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida».
Sob estas, os instrumentos destinados a silenciar a discordância, potenciando uma ordem única e violenta que se pretende eterna – como a polícia política e a censura, o controlo dos meios de comunicação, tribunais obedientes ou normas antidemocráticas que excluem ou controlam o voto livre e o exercício da crítica – não são suficientes, mostrando-se, apenas por si, incapazes de instalar essa dominação na consciência dos indivíduos e em todas as esferas da vida. Em sociedades complexas e dinâmicas, onde as hipóteses de escapar à imposição disciplinar se multiplicam, esta dificuldade funcional requer instrumentos bem mais sofisticados e eficazes.
Entram aqui em jogo os processos complementares de construção e imposição do pensamento único, tendentes a criar a unanimidade e ao mesmo tempo, como lembrou Herbert Marcuse, a fechar o universo do discurso, dele excluindo todo o sopro de autonomia e de liberdade. A escola, a propaganda política, uma informação filtrada, o doutrinamento, são então mobilizados para impor uma representação do mundo e da linha da história segundo modelos que rejeitam o contraditório, tomado como um perigoso vírus. Procura-se então isolar, excluir, coagir e silenciar, no limite prender, torturar ou aniquilar quem tenda a espalhá-lo.
Para tornar mais completo e eficaz este esforço de uniformização, mobilizam-se aliados. Homens e mulheres obedientes, pessoas comuns, capazes, através da denúncia ou do constrangimento social que isola e ostraciza, de funcionar como seus agentes de proximidade, levando a submissão a todos os lugares e moldando, de acordo com o modelo que se procura impor, a consciência íntima dos cidadãos, incapacitados para lhe fazer frente e mergulhados no conformismo.
Os casos históricos deste processo de vigilância, constrangimento e castigo, que tende a criminalizar sem hesitação e a punir de maneira severa e exemplar quem pense por si e não siga a voz do dono, distribuem-se por diferentes épocas e sociedades, mesmo nas que não incorporaram as variantes do modelo totalitário. Em todas, a manipulação da história e da memória, o recurso à delação e ao julgamento sumário são praticados de forma sistemática, assegurando no limite do possível, como no distópico «admirável mundo novo» ficcionado por Aldous Huxley, o condicionamento das consciências e o silenciamento do desvio.
Assim ocorreu com a Inquisição católica e a sua rede de agentes, com a intolerância religiosa que devastou a Europa nos séculos XVI e XVII, com o Terror na fase extrema da Revolução Francesa, com os sistemas concentracionários impostos pelo nazismo e pelos diferentes fascismos, com a política de degredo e extermínio imposta pelo estalinismo e suas imitações, com os métodos da «caça às bruxas» nos EUA do macarthismo, com a Revolução Cultural na China de Mao e dos Guardas Vermelhos, com a política de terra queimada no Camboja do Khmer Vermelho, com as ditaduras nacionalistas latino-americanas século XX, ou, atualmente, com o imenso campo vigiado que é a Coreia do Norte.
Pelas décadas de 1980-1990 acreditou-se que esses universos de exceção estavam em extinção, mas o tempo que vivemos tem mostrado como essa crença otimista não passou de ilusão. Assiste-se hoje, na realidade, ao surgimento e disseminação de formas novas e originais de coação social e de imposição do pensamento único. Estas integram quatro singularidades: não emergem necessariamente da máquina do Estado; surgem com frequência dentro das próprias democracias; assentam numa cultura da exclusão e da denúncia; e, por fim, invocam muitas vezes, por paradoxal que pareça, causas justas e necessárias.
Elas são ampliadas pela Internet e pelas redes sociais, bem como por algum jornalismo sem deontologia, associadas à iniciativa de grupos reduzidos e sectários, embora hiperativos, emergentes em ambientes particulares, que incluem universidades, centros de investigação científica e organizações não-governamentais. Nestes têm sido produzidos alguns modelos teóricos e seguidas práticas, erguidos formalmente contra a ordem dominante e vinculados a propostas de emancipação, que muitas vezes estimulam a vigilância das condutas, um clima de suspeição e modalidades de coação.
Radicalizados a partir de causas ligadas a setores sociais marginalizados que se batem pelo empoderamento – como as vinculadas aos direitos das mulheres e aos feminismos, ao combate pela autonomia da orientação sexual, às reivindicações de minorias, à repressão das formas de assédio ou da homofobia, aos imperativos da ecologia ou à luta contra o racismo e a xenofobia que os populismos e a extrema-direita têm alimentado – estes setores estão a impor condutas, a policiar linguagens, mesmo a conquistar posições de poder a partir das quais tencionam regular as sociedades.
No âmbito da chamada «cultura de cancelamento», julgam e punem sumariamente, sem direito ao contraditório, quem considerem não seguir estritamente os seus imperativos ou possa contestar os seus métodos. Servindo-se com frequência da máscara do anonimato, ou mesmo de uma coação profissional desregulada, os seus atores intimidam, difamam e excluem, generalizando, por vezes a partir de situações pontuais que podem merecer exame e cuidado, quem de algum modo rejeite as novas formas de pensamento único e de inflexível controlo dos comportamentos que propõem.
Como em 2017 lembrou a cientista política e académica Frances E. Lee, num artigo expressivamente intitulado «Why I’ve Started to Fear My Fellow Social Justice Activists», esses setores determinam mesmo o autopoliciamento de opiniões que arbitrariamente consideram «erradas, opressivas ou inapropriadas». Ou seja, tolhem a atividade crítica e a liberdade de expressão através da instalação do medo, precisamente em áreas que devem ser espaços de liberdade. No limite, em associação com a nova cultura global do ódio, promovem a sujeição do pensamento e da ação. Por isso, em nome da democracia, do pluralismo e da independência crítica, devem ser desmascarados e sobretudo contidos.
Rui Bebiano
Fotografia de domínio públicoSaído na edição em linha do diário Público de 4/5/2023