Por incrível que possa parecer, estamos a assistir esta segunda-feira, em alguns órgãos de comunicação social e em recantos das redes sociais, a um branqueamento do trajeto de Silvio Berlusconi que acompanha a notícia da sua morte. É verdade que o empresário arrivista, devasso contumaz e político persistente «marcou Itália nos últimos 40 anos», mas fê-lo apenas porque, pioneiro na Europa da vaga de populismo que emergiu nos anos oitenta do século passado, foi por três vezes primeiro-ministro, marcando ao mesmo tempo o mundo dos negócios e do entertenimento no seu país.
Lembrou o jornalista norte-americano Alexandre Stille – citado por Sofia Lorena no Público, num bom artigo que peca pelo título onde se chama a SB «o vendedor de sonhos que encantou Itália» – que este foi «criatura (e criador) do mundo pós-moderno, onde não importa o que aconteceu, mas o que toda a gente pensa que aconteceu», e um político típico «da época dos mass media, em que só contam o imaginário e a percepção». Berlusconi foi também o homem que abriu o governo da Itália à extrema-direita pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial.
Foi ainda acusado de abuso de poder, fraude fiscal, lavagem de dinheiro, corrupção activa e passiva, perjúrio, difamação, extorsão, cumplicidade com a Máfia, incitamento à prostituição e ao sexo com menores, além, para ser moderado no qualificativo, de explorador comercial do corpo feminino. Por diversas vezes condenado, aliás, embora a maioria dos crimes tenha acabado por prescrever antes da sentença. Foi ainda um narcisista doentio e um amigo declarado de Vladimir Putin. Se não foi um sujeito nada «encantador» e contra a qual o cidadão comum deva ser prevenido, não conheço quem o possa ser.
Rui Bebiano